Com a força incalculável das redes socias, esses vídeos de humor disseminam, em pleno século 21, estigmas e preconceitos seculares. Se na Idade Média a doença mental era vista como possessão de demoníaca ou feitiçaria, chegamos a era moderna mudando o conteúdo mas preservando a forma preconceituosa de lidar com a saúde mental, ou a falta dela.
Entre um meme e outro, acabamos perpertuando conceitos equivocados, desinformação e preconceito, ao estigmatizar quem usa os serviços dos Centros de Atenção Psicossocial, o Caps, além de afastar quem busca tratamento. Atualmente são quase três mil unidades desses Centros, que atendem pessoas em sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas.
“Isso é sempre muito ruim. Esses memes, piadas, são uma manifestação de estigma, de preconceito, de psicofobia. Foi criado esse termo que significa o preconceito, o estigma, contra não apenas a doença mental, mas tudo relacionado a ela. A pessoa que tem a doença, a doença em si, familiares, amigos, cônjuges, trabalho e etc”, explica a psiquiatra Miriam Gorender, Diretora -secretária da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e professora do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“É algo danoso. As pessoas que fazem isso não têm noção do mal que estão causando, do sofrimento que estão causando aos próprios pacientes, às famílias. São pessoas que realmente não assumem uma responsabilidade”, ressalta a especialista.
Na entrevista ao TNH1, Drª Miriam alerta para o último ponto citado acima, o trabalho. Ela chama a atenção para consequências desse na vida profissional das pessoas em tratamento psiquiátrico.
“A gente vê muito problemas com pessoas com doença mental que são impedidas de trabalhar, mesmo tendo plena condição. A doença mental, apesar de frequentemente ser incapacitante, ela não é automaticamente incapacitante. Mas as pessoas e as empresas têm medo de contratar quem tem qualquer doença mental ou tome qualquer medicação psiquiátrica. Assim como a gente pode comparar com as empresas que não queriam contratar pessoas que tivessem HIV. Ou seja, preconceito”, compara.
Na unidade do CAPs visitada pela reportagem, em Maceió, as impressões com relação ao humor pejorativo são semelhantes ao da psiquiatra. “Tem usuários que negam que frequentam o Caps. Esses vídeos geram um desconhecimento grande da instituição e do serviço prestado aqui. Eles só fortalecem a desinformação”, lamenta Karla Rocha, assistente social e gerente do Caps Sadi Carvalho, um Centro que atende pacientes de 14 bairros da capital alagoana.
Para Ana Clara Parízio, assistente social e especialista em saúde mental no mesmo Centro de Karla, ridicularizar a doença mental só piora as coisas para os pacientes. “É muito prejudicial [piadas e memes], sem dúvidas. Fazer piada com uma coisa tão séria. Brincar com um problema de saúde, e ainda mais de saúde mental, só traz prejuízos para quem já não está bem”, aponta.
► Usuária do Caps: "Não tem graça nenhuma"
Dona Juracy da Silva, 60 anos, uma das 400 pessoas atendidas todos os meses no Caps Sadi Carvalho, a piada não tem graça. “Não tem graça nenhuma. Não acho correto fazer piada com o problema do outro. Isso é sério, gente!”, diz dona Juracy, que há 10 anos frequenta o Centro, e fala com otimismo dos serviços prestados. “Sei que minha doença não tem cura. Mas eu tenho uma vida normal. Aqui eu fiz amigo, somos tratados como gente. Eles não largam você. Aqui no Caps eu virei até atriz. E agora estou aprendendo a ler”, afirma uma paciente otimista com o tratamento recebido, depois de relatar um histórico de surtos e tentativa de suicídio, fruto de uma vida que envolve abusos e violência doméstica.
► PSICOFOBIA: SEU PRECONCEITO CAUSA SOFRIMENTO
A psicofobia, conceito pouco difundido, não nasceu com a internet, mas encontrou nas redes sociais um terreno fértil, onde o humor politicamente incorreto e, neste caso, pejorativo e até cruel, é compartilhado, curtido e comentado diariamente, sem espaço para a reflexão sobre o mal que pode causar.
Curiosamente, o termo “psicofobia” partiu de uma sugestão do humorista Chico Anysio. Em entrevista em 2011 ao presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Dr. Antonio Geraldo da Silva, o humorista revelou que fazia tratamento contra a depressão há mais de duas décadas. E sugeriu que era necessário criar-se um termo para descrever o preconceito sofrido por pessoas com doenças mentais. Após estudos e avaliações, o presidente da ABP criou o neologismo Psicofobia. Com isso, institui-se o 12 dia abril, data de nascimento do humorista, como o Dia Nacional de Enfrentamento à Psicofobia.
Certamente nem todos os que compartilham os “memes do Caps” diariamente conhecem a campanha de combate à psicofobia, encampada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), mesmo que este ano, a campanha tenha completado uma década. Um trabalho reconhecido internacionalmente, considerada a maior campanha anti-estigma do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Depois de rir dos memes, é hora de refletir. Assista ao vídeo de divulgação da campanha da ABP 2024:
► Criminalização da psicofobia
Como todo preconceito, o combate à psicofobia precisa ir além das ações educativas. Para a psiquiatra Miriam Gorender, assim como racismo, é preciso penalizar esse tipo de postura.
“Hoje, felizmente, por exemplo, você não pode sair fazendo piada racista. Por quê? Porque é crime. Então, esses comportamentos irresponsáveis, criminosamente irresponsáveis, eu acho que só vão parar quando esse tipo de preconceito for criminalizado. E nós lutamos por isso e pedimos ajuda à mídia para que nos ajude nessa batalha”, afirma.
Projeto de Lei - No Senado Federal tramita um projeto de lei com a mesma idade da campanha da ABP. Há dez anos o então senador Paulo Davim, do Rio Grande do Norte, protocolou o Projeto de Lei nº 74, que alterava o Código Penal, prevendo pena de até 3 anos para quem praticasse injúria contra pessoas com transtorno mental. A proposta chegou a ser aprovada pela Comissão de Direitos Humanos da Casa, mas não chegou a ir à plenário para votação.
► INFORMAÇÃO PARA COMPARTILHAR: CONHECENDO MELHOR O CAPS
O Caps integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Ministério da Saúde. Trata-se de um um conjunto integrado e articulado de diferentes equipamentos que atende pessoas em sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, mantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A rede envolve as esferas federal, estadual, com ações intersetoriais.
Essa rede inclui a Unidade Básica de Saúde/Estratégia de Saúde da Família (UBS/ESF), Unidades de Acolhimento (UA), Serviços Residências Terapêuticos (SRT), Programa de Volta para Casa (PVC), Unidades de Pronto Atendimento (UA), SAMU, Hospitais Gerai, Centros de Convivência e Cultura e, claro, os Caps.
Mas nem todo Caps é igual. O serviço se divide por tipo de atendimento, horário de funcionamento e número de habitantes. O Caps ad, por exemplo, que atende pessoas com problemas ocasionados por abuso de álcool e outras substâncias. Veja como funciona cada um dos 6 tipos de centro.
►Mais de 26 milhões de atendimento em todo o país
Os Centros de Centros de Atenção Psicossocial são destinados a municípios acima de 15 mil habitantes. Hoje, o país conta com 2.947 Caps, distribuídos em 1.973 municípios.
São Paulo é o estado com mais unidades (489), seguido de Minas Gerais (392) e Bahia (270).
Até 2023, segundo levantamento do MS, no país foram mais de 26 milhões de atendimentos em todo o país (exatos 26.367.627). São Paulo lidera o ranking, com mais de 6 milhões de atendimentos ( 6.744,010). Em seguida vem Minas Gerais com 3.160 mil atendimentos. O Rio de Janeiro fica em terceiro em número de atendimentos: 2.043743. Vale lembrar que o número de atendimento não corresponde ao número de usuários atendidos, considerando que uma pessoa pode ter sido atendida mais de uma vez.
► APÓS 23 ANOS, REFORMA PSIQUIÁTRICA AINDA DIVIDE OPINIÕES
Os memes espalhados pelas redes sociais disseminam, entre outros mitos, a confusão entre Caps e hospitais psiquiátricos. Ambos importantes na rede de apoio à saúde mental, os dois aparelhos estão no centro de uma discussão que ainda se estende passados 23 anos da Reforma Psiquiátrica, sancionada em 2001 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Basicamente a queda de braço se deve ao modelo adotado atualmente, com base nos centros de acolhimento. Formato que não é unânime entre os profissionais da área.
‘Existe uma narrativa já de muitos anos de que o CAPS é um serviço substitutivo. O problema é que não tem como um CAPS substituir um leito de hospital psiquiátrico especializado. O que nós na ABP defendemos é que o Caps não tem como ser substitutivo, ele pode ser no máximo complementar, porque o objetivo com qual o CAPS foi criado foi para reabilitação social de doentes graves e crônicos, enquanto que a hospitalização é para doentes em episódio agudo”, afirma Drª Miriam Gorender.
“O hospital psiquiátrico tem determinadas características que um CAPS não tem como repor ou substituir. Então ele tem um médico psiquiatra plantonista 24 horas, nenhum CAPS tem isso. Ele tem um ambiente protegido que o CAPS não tem. E quando eu falo ambiente protegido, é por exemplo, sem possibilidade do paciente ter meios para se matar ou matar outras pessoas. Sendo que quando o paciente é internado, a indicação para o internamento, a indicação técnica para o internamento hospitalar vai ser sempre risco iminente para a vida do paciente, ou de terceiros, ou de dano grave”, defende a especialista.
Na outra ponta da discussão, os defensores do modelo Caps ressaltam a humanização dos Centros, em contraponto com os antigos manicômios, onde, em muitos casos, foram registradas cenas degradantes.
O Caps tem em sua filosofia um serviço de saúde de caráter aberto e comunitário, que atua para reintegração do paciente à sociedade e à própria família.
“O Caps é um serviço porta aberta. Aqui os usuários são tratados como uma pessoa, não apenas um paciente. Não se trata apenas de um serviço médico. Há um resgate da cidadania, um tratamento integrativo, um olhar enquanto pessoa”, afirma Karla Rocha, do Caps Sadi Carvalho. A colega de Centro, Ana Clara Parízio, faz coro.
“A pessoa encontra aqui um tratamento multidisciplinar. Do psiquiatra ao terapeuta ocupacional, do assistente social ao nutricionista. Aqui há um cuidado nutricional, educação física, oficinas, artes. É um cuidado completo”, afirma.
► AMANDA & KENN VICTOR - UMA HISTÓRIA DE AMOR QUE COMEÇOU NO CAPS
“Parece até zoeira mas é real: o cara me conheceu no Caps e hoje em dia me trouxe para morar com ele no Japão até temos um filho”. A frase, de um post no Instagram é da pernambucana Amanda Teresa, 22 anos. O “cara” a quem ela se refere é o esposo, Kenn Victor, 26 anos, músico e atleta de ascendência japonesa. Juntos eles vivem uma história que mais parece um roteiro de um dorama, como são chamados os seriados asiáticos.
Consultas em unidade do Caps e uma lista de distúrbios que inclui ansiedade, depressão, síndrome do pânico, bipolaridade e TDAH não são exatamente atributos românticos para uma história de amor. Mas foi nesse turbilhão que nasceu o relacionamento desse casal, que hoje mora Gunma, um distrito na ilha Honshu, no Japão, com o filho de dois anos.
“Eu a via no Instagram após uma amiga dela mostrar o meu perfil pra ela. Morávamos bem distante um do outro. Eu em Porto de galinhas e ela em Paulista. O trajeto demorava em média 3 horas e eu alternava entre ônibus, metrô e Uber dependendo do horário. Quando eu que ia pra lá coincidiam com os dias de consulta dela no CAPS. Nossos primeiros meses juntos foram nessas idas ao CAPS. E eu tinha o maior prazer de acompanhar e sentir que estava ajudando a cuidar dela e fazer ela melhorar”, conta Kenn, em entrevista pelo WhtatsApp, no intervalo do trabalho em uma fábrica de autopeças.
Se ele hesitou namorar uma jovem “problemática”? “Ela estava tratando ansiedade, depressão, síndrome do pânico, bipolaridade e TDAH. Como eu já tinha conhecimento de todos esses transtornos e também tinha muito sintomas de ansiedade e depressão e TDAH (mas nada diagnosticado de fato porque não fazia terapia), não era algo que me dava medo ou algo do tipo. Então sempre fui muito compreensivo e empático, fatores que acho muito importantes para se relacionar com alguém assim, e então conseguia lidar bem com essa situação”, explica.
Mas ao contrário da postura do hoje marido, Amanda enfrentou preconceitos de outras pessoas. “A Amanda tem uma incrível trajetória de luta e superação. Desde os 14 anos ela faz terapia e tomava medicamentos de tarja preta e vermelha. A maioria das pessoas do circulo social dela não entendiam e eram ignorantes sobre saúde mental. Então falavam os maiores clichês que os ignorantes falam: falta de Deus, que se drogava (por causa das crises de bipolaridade), que precisava apanhar e etc”, observa o jovem, citando estigmas bem comum, como já mostrado na reportagem.
Otimista e cheio de empatia, mas consciente de que os memes geralmente são usados de forma negativa, Victor dá uma dica de marketing.
“Os responsáveis pela propaganda do CAPS deveriam até se aproveitar de como tá sendo muito usado no momento, para também tirar o lado da desinformação de que lá só tem ’maluco’. Quem bota o CAPS ou pessoas com transtornos mentais em piadas deve tomar extremo cuidado com as palavras e a intenção do humor”.
► EBOOK EXPLICA TUDO SOBRE A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL