sábado, 18 de junho de 2011

“O Samba Que Mora em Mim”: Voz do povo

Cloves Geraldo* do Vermelho

          A câmera da diretora brasileira Georgia Guerra-Peixe, em “O Samba Que Mora em Mim”, mais do que destoar do filme-favela, capta instantes da comunidade da Mangueira que são verdadeiros poemas-visuais. Não é a visão da pobreza, da violência provocada pelo crime organizado, mas reflexo da memória de quem documenta o cotidiano de um dos centros irradiadores da cultura brasileira. Num registro de sua própria identidade, centrada em seres comuns, não em figuras emblemáticas da escola de samba ou do próprio samba, ela desmonta clichês e estigmas tão comuns hoje no cinema e, mais do que isto, na mídia. Seus “personagens” são mulheres e homens com suas histórias e memórias, que se confundem com o da própria cidade.
           Podem ser as da bem humorada afro-descendente, que entre um caso e outro, não consegue mais contar o número de filhos que teve e, por conseqüência o de parceiros. “Eu gostei deles, nenhum deles gostou de mim”, comenta sem traço de mágoa. Não reclama da vida, “vai-levando”, como diz Tom Jobim, tampouco deixa de procurar, indo de um lado ao outro de seu barraco de escassos móveis. Podem ser também as de Vó Lucíola, que se fundem com a história do bairro, surgido em 1852, que começou a ser habitado de fato no fim do século XIX. O marido trabalhou no porto e ela na Fábrica de Chapéus Mangueira e hoje é referência na comunidade.
         Entre esses passeios pela memória, a diretora, num diálogo com seus “personagens”, faz sua câmera passear pelo bairro. Fraga becos, ruelas, horizontes com uma luz cálida, quase de sonho. Crianças, mulheres, jovens, homens, trabalhadores, indo por esses espaços, sem a urgência ditada por tiroteios, traficantes armados nas Lages. É o fluir de vidas ditando seu próprio ritmo, ainda mais depois da presença da UPP. Porém, ela, a diretora, não se furta de mencionar a presença do tráfico neste complexo de mais de 20 núcleos populares. Ela, se não o mostra, não deixa de a ele fazer referência. A presença dele é antevista nas falas dos “personagens”, na maneira como a ele se referem, sem lhe dar destaque.
          Porém, o que a diretora quer mesmo é dar voz a homens e mulheres que, normalmente, não são vistos na mídia. Como a jovem, dona de botequim, que sustenta os filhos, frequenta os bailes funk e escapa ao estereótipo da mulata. Quando ela centra a narrativa em figuras mais conhecidas, eles destoam do conhecido. O DJ Glauber, que mostra suas preferências musicais, enfatizado através delas a não prevalência de nenhum deles. “Eu gosto de samba, de pagode e de funk”. A raiz e o moderno convivendo com o rapp. E o mestre da bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, mestre Taranta, que traz para o espectador o universo com o qual está familiarizado.
Tráfico é quase
invisível no filme
         Então a câmera de Georgia Guerra-Peixe deixa correr, por instantes, a história da escola de samba, criada entre outros por Carlos Cachaça e Cartola, em 1928. São sequências mais para cobrir falas, não para transitar por espaços por demais vistos. Entre eles estão a quadra de ensaios e, por que não, a pista do sambódromo. E logo retorna à rua, à vista panorâmica de parte da zona norte, atestando o contraste entre os bairros de alta classe média e o complexo de moradias populares. A beleza da paisagem, reforçada pelas imagens, distancia realidades, chama atenção para a desigual divisão da riqueza. E, embora não seja esta a intenção da diretora, comprova a urgência de mudanças na estrutura urbana da Mangueira, mais drásticas do que a já instalada UPP.
        Além disso, o que chama atenção em “O Samba Que Mora em Mim” é o tratamento dado pela diretoraàs imagens e a condução das entrevistas. Há predominância do claro escuro, que reforça a dureza dos ambientes em que vivem os entrevistados e, ao mesmo tempo, lhes dá o caráter de memória. Quando passeia pelos ambientes, não há deleite com a pobreza. E os entrevistados, desacostumados às câmeras, se soltam, deslindando suas vidas, como numa conversa entre amigos. Escapa aos enquadramentos chapados, de retratinho falante; tão comuns na TV e em muitos documentários.
        Enfim, “O Samba Que Mora em Mim” é daquelas jóias que mesmo não buriladas, brilham. Difícil não deixar o cinema com a sensação de que há vida e ela pulsa na Mangueira. Não é á toa que saiu da 34º Mostra Internacional de São Paulo com o Prêmio Especial do Júri.
O Samba Que Mora em Mim”. Brasil. Documentário. 2011. 72 minutos. Fotografia: Marcelo Rocha. Roteiro: Ticha Godoi, Georgia Guerra-Peixe. Direção: Georgia Guerra-Peixe. Elenco: Timbaca, Los Ninho, Lila, Vó Lucíola, Hevalcy, Mestre Taranta, DJ Glauber.


* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

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