segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A blindagem tucana

Por Paulo Moreira Leite*

Ainda é cedo para procurar equivalências entre o esquema financeiro que deu origem ao mensalão petista e o esquema que está por trás dos negócios sombrios que envolvem duas décadas de gestão tucana em São Paulo.

O que já se pode assegurar é que em matéria de autoproteção o esquema tucano mostrou-se muito mais eficiente.

A blindagem tucana era tão bem sucedida que só foi vencida por uma multinacional alemã, a Siemens, que tomou a decisão de pedir um acordo de leniência junto às autoridades brasileiras, confessando duas décadas de práticas condenáveis, apresentando nomes, cargos e endereços.

Foi essa iniciativa, que envolve uma das maiores empresas do mundo, que mudou a história.

As primeiras denuncias sobre o propinoduto tucano remetem a 1998 e, como se vê, jamais foram apuradas nem investigadas como se deveria. Adormeceram em inquéritos que não esclareceram todas as provas e indícios. A imprensa nunca mostrou o mesmo apetite para explicar o que acontecia.

Se há algo realmente novo a ser apurado hoje consiste em perguntar por que havia tantos indícios e pouco se investigou, ao contrário do que se fez no mensalão petista.

Num país que hoje debate até erros e possíveis abusos ocorridos no julgamento do mensalão, que traiam a vontade de punir os acusados de qualquer maneira, ninguém irá acusar o procurador Antônio Carlos Fernandes, nem seu sucessor Roberto Gurgel nem o relator Joaquim Barbosa de fazer corpo mole, certo?

A recíproca não é  verdadeira.

Mesmo reportagens pioneiras sobre o propinoduto, como a de Gilberto Nascimento, que em 2009 mostrou tanta coisa que hoje deixa tanta gente boquiaberta em relação ao PSDB paulista, não causaram ruído nem preocupação. Neste período, denuncias parciais sobre o caso entravam e saíam dos jornais, de forma esporádica e superficial.


A situação se modificou quando ISTOÉ permaneceu duas semanas consecutivas nas bancas, com duas capas dedicadas ao assunto. As reportagens de Alan Rodrigues, Pedro Marcondes de Moura e Sergio Pardellas trouxeram revelações importantíssimas e consolidadas sobre as entranhas do cartel de empresas que administrava o esquema.   

ISTOÉ  faz muito bem em lembrar, na edição que acaba de chega às bancas,  a existência de dezenas de inquéritos e investigações iniciadas e encerradas sem maiores consequências. A revista mostra que ninguém pode alegar que não sabia de nada.

O dado político  é simples. Se o mensalão petista tivesse sido apurado e investigado no mesmo ritmo do propinoduto tucano, que levou quinze anos para ganhar a estatura atual, apenas em 2020 teríamos uma CPI para ouvir as denúncias de Roberto Jefferson. Em vez de ser retirado à força da Casa Civil, José Dirceu quem sabe tivesse sido promovido a candidato presidencial, em 2010, e em 2013, como sonhavam tantos petistas, pudesse estar sentado na cadeira de Dilma Rousseff. Ou talvez Lula tivesse escolhido Antonio Palocci como sucessor.

Em qualquer caso, a palavra mensalão ainda não faria parte do vocabulário dos brasileiros. Joaquim Barbosa até poderia ter virado ministro do Supremo – afinal, desde a posse Lula queria colocar um ministro negro no STF  – mas dificilmente teria acumulado tanta popularidade em função de um julgamento que talvez só fosse ocorrer, quem sabe, em 2027.

Seguindo nessa pequena ficção científica, também seria curioso perguntar quais, entre os líderes do PSDB, quais teriam  sido levados ao banco dos réus.

Teriam direito a um julgamento isento ou teríamos aplicado a teoria do domínio do fato? Ou, a exemplo do mensalão PSDB-MG, teriam sido todos levados a um tribunal de primeira instância? Os juízes se divertiriam fazendo piadinhas sobre os tucanos e seus discursos éticos?

Basta colocar rostos e nomes nos dois escândalos para compreender  que nunca teriam o mesmo desfecho, certo?

Até agora, nem a Assembléia Legislativa nem o Congresso conseguiram assinaturas para abrir uma CPI. É um recorde, quando se lembra que, entre 2005 e 2006, funcionavam três CPIs para tratar do mensalão.

O governador Geraldo Alckmin decidiu montar uma comissão para acompanhar as investigações. Imagine se Lula tivesse feito a mesma coisa, em 2005. No mínimo teria sido acusado de usar o “aparelho petista” para influenciar os trabalhos do Congresso e da Justiça, certo?

A semelhança entre os escândalos não se encontra nos personagens, nem em seus compromissos políticos.

A semelhança reside no caráter do Estado brasileiro, na sua fraqueza para se proteger de interesses privados que procuram alugar e controlar o poder político. 

É um drama que está na origem do mensalão petista e ajuda a entender a prolongada e impune existência do propinoduto tucano.  

Depois de ensinar que a história ocorre uma vez como tragédia e uma segunda, como farsa, Karl Marx nos lembrou que os homens não atuam sob condições ideais, que aprendem nos livros de boas maneiras nem nos cursos de civismo, mas atuam sob condições dadas, que herdaram de seus antepassados.

O discurso moralista gosta de atribuir a corrupção à falta de escrúpulos de nossos políticos, o que é uma visão ingênua e perigosa.

Não há dúvida de que pessoas inescrupulosas podem enriquecer com o dinheiro dos esquemas políticos. (Também há pessoas inescrupulosas que enriquecem na iniciativa privada, na próxima esquina, no primeiro botequim e até em aniversário de criança, vamos combinar).

Mas o dinheiro dos partidos, que circulou nos dois casos, é fruto da natureza distorcida e abrutalhada de nosso regime político, onde a democracia foi acompanhada por uma libertinagem de alta tolerância nas regras financeiras, sob medida para que o Estado pudesse ser capturado e alugado pelas potencias privadas.

Numa sociologia rápida, pode-se dizer que, com o fim da ditadura militar,  a turma do alto da pirâmide passou a utilizar o sistema privado de financiamento de campanha como um contrapeso para enfrentar demandas populares.

Num regime democrático, a questão social não pode ser um caso de cadeira de dragão no DOI-CODI, não é mesmo? Tenta-se, então, amaciar o pessoal de cima.

É por isso, e não por outra coisa, que sempre se tratou com palavras de horror fingido todo esforço para regulamentar verbas de campanha e mesmo para impedir que eleitores de R$ 1 bilhão de votos pudessem se impor sobre um regime que, no papel, prevê a regra de que l homem = 1 voto.

Neste aspecto, as confissões dos executivos da Siemens contém ensinamentos úteis a todos.

Estes estão dormindo no caso
Um dos mais preciosos é o diário de um gerente, que detalha as negociações para a construção da linha 5 do metrô paulista. Fica claro, ali, que as empresas privadas são senhoras da situação. Negociam acordos, partilham obras, serviços e, é claro, verbas. Interessado no metrô, uma obra mais do que necessária, tanto para a população como para seus planos políticos, o governo – o titular, na época, era Mário Covas – está reduzido a impotência absoluta.

Não tem força política para impor aquilo que a lei manda, que é a concorrência impessoal e absoluta entre as partes. Não lhe passa pela cabeça denunciar suas práticas à Justiça.

Em tempos de privatização acelerada, novidade que o PSDB ajudava a trazer ao país na época, junto com controles de gastos que proibiam qualquer gasto  maior, não se cogita a possibilidade de entregar um investimento tão grandioso ao Estado.  

Nessa situação o governo é forçado a ceder ao cartel de falsos concorrentes e adversários de araque, sob o risco de enfrentar ações judiciais, protestos e investigações que irão paralisar os investimentos.

É assim que o governador, chamado de “cliente” no diário, manda dizer que quer que “eles se entendam”. O “cliente” também avisa que após o acordo entre os concorrentes, irá recusar reclamações e queixas futuras.

Num artigo sobre o caso, a colunista Maria Cristina Fernandes, do Valor, recorda que, com o passar dos anos, os governos petistas também fizeram a mesma coisa, instalando no ministério dos Transportes – armazém de gastos de vulto -- partidos com “notória especialização nos contratos da política.”

Essa situação cinzenta tem uma finalidade. Quer-se impedir o surgimento de novos entraves a investimentos necessários ao país. 

Bobagem querer enxergar o que se passa nos bastidores  com olhares simplórios do simples moralismo.

O país necessita de investimentos para criar empregos e se desenvolver. As obras de infraestrutura, como metrô, se destinam a superar uma omissão histórica. A questão é política e envolve a definição de regras que permitam a democracia brasileira recuperar sua soberania, mantendo o dinheiro dos interesses privados longe da política e dos políticos. Seu lugar é a economia e não o Estado.

Nós sabemos que a necessidade de uma reforma política é apoiada por 85% dos brasileiros. Ela pode proibir o uso de dinheiro privado no financiamento político, cortando o laço material que se encontra na origem de tudo. Um escândalo desse tamanho pode ser de grande utilidade neste debate.

Quem dizia que o debate sobre reforma eleitoral era desculpa do adversário  tem a oportunidade de assumir uma postura honesta e encarar a discussão. Não se trata de uma guerra de propineiros x mensaleiros mas de um esforço para emancipar a democracia de outros interesses além da soberania popular. 

 *Paulo Moreira Leite


Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".




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