Dois meses depois, o jornalista e apresentador Luiz Felipe de Campos Mundin, que assina como Felipeh Campos, anunciou que faltava pouco para fundar a já polêmica Gaivotas Fiéis, primeira torcida organizada com conceito gay do Corinthians.
A Pública conseguiu entrevistar um personagem importante em ambos os episódios, Marco Antônio de Paula Rodrigues, de 34 anos. Conhecido pelo apelido “Capão”, por ter crescido no Capão Redondo, bairro periférico da zona sul de São Paulo, ele é presidente da Camisa 12, e foi um dos cinco que protestaram contra o selinho de Sheik. Ele revela ter sido o autor da faixa que dizia “Viado não” – a única, dentre as três, que considera agressiva. “Só essa foi um pouco mais forte, foi um excesso. Eu que risquei com o spray essa faixa, eu até pensei [que era agressiva], mas depois que nós já estávamos lá, a gente não podia voltar atrás”, diz. Trajado da cabeça aos pés com roupas da Camisa 12 (boné, camiseta, agasalho, bermuda e até meias da torcida), Capão é assertivo, olha nos olhos e tem a voz rouca. Aceitou falar durante uma hora e meia com a reportagem da Pública na sede da torcida, no bairro paulistano do Pari, região central, para “dar a explanação” sobre os dois episódios.
Sobre a iniciativa de Felipeh Campos, Capão vê a nova torcida gay como puro marketing. “Acredito que ele está pensando mais numa autopromoção do que numa torcida organizada. Porque para nós, uma torcida organizada começa como a gente sempre troca ideia nas torcidas: o cara vai para uma caravana, o cara participa de vários jogos do Corinthians na arquibancada e não na numerada, a pessoa participa de inúmeras manifestações corintianas que teve nesses últimos anos, tanto de protesto contra diretoria, contra jogador. Tem uma caminhada ideológica dentro de uma instituição para você fundar uma torcida organizada. Torcida organizada não é um comércio, mano”, argumenta.
“Tomei muita borrachada da polícia por aí, passei muita fome na estrada, nunca fomos pra qualquer lugar e fomos bem recebidos por qualquer órgão que cuida da organização do jogo no estádio, da segurança pública, nós sempre fomos maltratados por muitos deles, então a torcida organizada não é simplesmente chegar e falar: ‘Ó, vou criar uma torcida hoje. Vou criar uma camisa e vou pro estádio’”.
Para Capão, é “inaceitável” a escolha do nome da torcida gay e a corruptela do símbolo do Corinthians – no brasão da Gaivotas, além da nova ave, o símbolo tem como fundo um espelho de maquiagem com direito a pincel e lápis, e a bandeira do Estado de São Paulo foi pintada com as cores do arco-íris, ícone do movimento gay.
“Eu acho que o rapaz lá acaba beirando até o ridículo… Ele está transmutando as nossas coisas. Tanto pelo nome que ele coloca se referindo a uma torcida que tem uma puta tradição [Gaviões da Fiel, a maior organizada do Corinthians, fundada em 1969] quanto do nosso símbolo do Corinthians, ele colocar um espelho e uns negócios de maquiagem no símbolo… Numa entrevista que eu vi, perguntaram: ‘Mas por que isso daí?’ E ele: ‘Ah, porque na verdade o corintiano vai gostar de se pintar na arquibancada’. Meu, torcida do Coringão é 90 minutos, mano. A gente gosta é de cantar, de sofrer, de chorar pelo Coringão. Não é de se pintar. Com todo o respeito, nem as nossas mulheres fazem isso”, afirma Capão, que é contra a existência de uma torcida gay. “Já digo de pronto que eu não sou favorável a ter uma torcida gay, porque eu acho que os gays não precisam disso daí pra poder se achar numa sociedade que já está abrangendo todo mundo”.
Perguntado se existem gays na Camisa 12, Capão não hesita: “Nós não temos gays na torcida, mano. Pelo menos nunca soubemos, entendeu. Meu, se o cara tá lá, tá assistindo o jogo. Tudo bem, nós vamos respeitar, mas qualquer faixa assim, nós somo contra mano. Nós não queremos, de verdade mano, aqui dentro da 12. Pra nós é sério o estádio, não é só pra brincar”. Capão, explicando que, se “no meio de um gol os dois de repente se beijarem no meio da nossa torcida”, seria “ruim”: “O estádio pra nós é um templo”.
O lastro, para Capão – que não se considera homofóbico –, é sempre a tradição. “O cara ir pro jogo, se for um homem, de shortinho amarradinho, camisa amarradinha e todo pintado… Pra nós não rola meu, de verdade. Porque o nosso tradicionalismo, infelizmente, meio ogro, tá ligado, até beirando homem da caverna não permite isso daí, certo?”. Se a Camisa 12 fosse homofóbica, exemplifica Capão, “a gente juntava os associados da 12 e ia lá na passeata gay quebrar todo mundo. No entanto que ninguém tá muito se manifestando [sobre a Gaivotas Fiéis], certo? Por quê? Porque tudo que a gente fala, a mídia distorce”.
Sobre o episódio do selinho do Sheik, Capão diz que o problema foi o atacante ter declarado que o beijo era para comemorar a vitória do Corinthians. “Quando ele falou que ele estava fazendo aquilo pra comemorar o jogo ele já transferiu a responsa pro Corinthians”, afirma, explicando que, depois do episódio, onde quer que o Timão jogue é recebido com gritos de “beija, beija, beija” pelos torcedores rivais. “Estávamos ali [no protesto] representando muitos torcedores. Muitos pediram para que a gente tomasse a frente, tanto que eu recebi inúmeras congratulações depois”, diz.
Gaviões X Gaivotas
A Gaviões da Fiel, maior organizada do Corinthians, fez uma denúncia de crime contra a propriedade industrial no 1º DP de Guarulhos, contestando a sátira à marca da torcida, que é registrada. A torcida reclama que a proximidade dos nomes e símbolos das duas pode induzir ao erro. “Eu não sei onde eles enxergaram plágio”, contesta Felipeh Campos, da Gaivotas. “A minha torcida chama Gaivotas Fiéis, não é gavioa. Já começa que Gaivota é feminino, não é masculino. Se eu tivesse colocado cílios e salto alto no gavião, aí eu até acredito que poderia ter sido uma questão de plágio. Porém eu não estou utilizando as peças do emblema para plagiar alguma coisa. Entendo isso como uma retaliação homofóbica”, diz.
Felipeh conta que vem sendo ameaçado nas redes sociais, e que foi agredido verbalmente na semana passada, na Avenida Paulista. “As ameaças são coisas do tipo ‘Cuidado, eu vou te matar’, ‘Você já tá jurado de morte’, ‘Abre teu olho’. Então você vê que são atitudes extremamente homofóbicas e preconceituosas, elas não têm outros motivos”, diz. Sobre a agressão ao vivo, ele conta que ocorreu na saída de seu trabalho, na sede da TV Gazeta, na avenida Paulista. “Eu estava com um amigo meu na Paulista e um cara passou, me esbarrou e começou a me xingar. E eu falei: ‘É comigo que você tá falando?’ E ele: ‘ Você acha que é com quem? Tá pensando que você e a sua turminha vai entrar em estádio? Não vai não, mano’. E eu falei: ‘Bom, vamos conversar, abaixa o tom de voz’. E aí ele continuou a gritar e eu falei: ‘Ótimo, a polícia está vindo ali, eu vou te incriminar agora em crime de homofobia e você vai sair daqui para a cadeia’. Aí na hora que ele viu que a polícia vinha vindo a pé, ele meio que saiu de canto e deu um pinote”, relata.
Felipeh Campos conta que desde pequeno frequenta estádios. “O futebol nas décadas de 70 e 80 era uma grande festa. Mas foi crescendo de uma forma tão grande que deixou de olhar para a questão democrática. Não está escrito na porta do estádio que só é permitida a entrada de homens, né? Eu acredito que não só os gays têm que frequentar os estádios, como a mulher, as crianças, entendeu? O futebol é pra todos”, diz. “Mas é claro que o conceito da torcida é gay e o meu objetivo maior é inserir o público gay no estádio de futebol. Eles [as organizadas] monopolizaram os estádios”, diz.
De fato, a divisão do estádio do Pacaembu é um dos argumentos de Capão para rejeitar a convivência com as Gaivotas. Por determinação da Federação Paulista de Futebol, as organizadas do Corinthians têm que ocupar as arquibancadas Verde e Amarela, atrás de um dos gols, nos jogos em que o clube é mandante. Se ficasse fora desse setor, a Gaivotas estaria violando a regra. “Mas dentro desse setor, nós já temos seis torcidas: temos a Gaviões da Fiel, temos a Camisa 12, a Pavilhão 9, a Estopim da Fiel, a Coringão Chopp e a Fiel Macabra. São seis torcidas que estão ali e todas elas obtiveram a caminhada. Ninguém chegou do nada não”, argumenta Capão.
Felipeh garante que o objetivo não é “fazer represália com qualquer tipo de segmento sexual”. Porém, sobre dividir espaço com as outras organizadas, ele é enfático. “Nem que eu tiver que pedir segurança para o exército. Mas que a minha torcida vai entrar nos estádios, isso vai, com certeza. Nem que a gente tenha que chegar de carro-forte, de tanque”. Ele ressalta que a sua torcida será profissional e que todo o corpo diretivo será remunerado, diferentemente das outras organizadas.
Procurado pela Pública, Jerry Xavier, diretor da Gaviões da Fiel, disse que a torcida não se pronuncia sobre esse tema. O Corinthians também afirmou, via assessoria, que não se manifesta a respeito de torcidas.
Homofobia bate recorde no Brasil
O Brasil, o país do futebol, vem sendo líder no ranking de mortes por homofobia. Segundo dados do relatório “Assassinatos de Homossexuais (LGBT) no Brasil”, de 2012, do Grupo Gay da Bahia, o Brasil concentra 44% do total de assassinatos por motivação homofóbica no mundo. Em 2012, foram registradas 3.084 denúncias de violações ligadas à homofobia e 310 homicídios por esse motivo.
Estádio: a terra no macho
“Por ser o estádio um ambiente que tem uma série de permissões nas relações masculinas – carinhos, afetos, às vezes até mesmo agressões – é necessário que esse ambiente seja considerado seguro para os homens. Para garantir essa suposta ‘segurança’, os torcedores precisam reforçar a sua masculinidade. E uma das coisas que melhor reforça a masculinidade na nossa cultura é a homofobia. Por isso ela aparece de forma tão gritante”, afirma o pedagogo e professor da UFRGS, Gustavo Andrada Bandeira, autor da tese de mestrado “‘Eu canto, bebo e brigo…alegria do meu coração’: currículo de masculinidades nos estádios de futebol”.
Para Bandeira, esse é o motivo da rejeição às torcidas gays: “Se a torcida do Corinthians, do Grêmio ou do Internacional for a primeira a levantar uma bandeira pró ações afirmativas, ela poderá ser chamada de a ‘torcida gay’, e as torcidas acham que isso é um problema”, diz.
Para Marco Antonio Bettine de Almeida, professor livre docente na Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH-USP, a reação é “natural” num espaço que sempre foi dominado pelo masculino. “A partir do momento que as agendas de visibilidades desses grupos excluídos, que tiveram seus direitos cerceados, que são espancados, é natural, vendo a representação que o futebol tem no Brasil, começar toda essa movimentação de garantir uma representação nesse espaço eminentemente masculino, do macho, do falo”. Para ele, no entanto, há espaço para negociação entre os grupos LGBT e as organizadas. “Uma mulher no estádio é aceita, por exemplo, mas tem que representar os papéis dentro do estádio, que é torcer, xingar, participar. As torcidas gays ou não gays têm que incorporar um pouco da história desse espaço do torcer. E conhecer, minimamente, os códigos, senão vai gerar conflito. Porque o espaço é um espaço sagrado e tem uma carga cultural muito forte”.
Bandeira discorda. “Se é uma torcida gay, que ela tenha comportamentos diferentes das torcidas não gays. É sempre complicado quando a gente quer transgredir as regras de gênero sexual num ambiente muito marcado. Mas me parece que seria muito mais interessante se eles fizessem algo diferente”. Foi essa a aposta da Coligay, a primeira torcida homossexual do país, que em plena ditadura militar conquistou seu espaço dentre os torcedores do Grêmio (leia abaixo).
Uma inspiração para o caso brasileiro pode ser a GFSN (Gay Football Supporters Network, Rede de Torcedores de Futebol Gays, numa tradução livre). Fundada em 1989, a associação do Reino Unido tem diversas iniciativas para a inserção do público LGBT no futebol. “Estamos em contato permanente com muitos clubes para recomendar políticas anti-homofóbicas por parte deles”, afirma Simon Smith, do departamento de comunicação. “Ajudamos, por exemplo, a consolidar os Gay Gooners, a torcida LGBT do Arsenal e conseguimos o apoio formal de representantes do Liverpool e do Everton para a parada do orgulho LGBT da cidade de Liverpool. Dentro de campo, organizamos há dez anos campeonatos de futebol voltados ao público LGBT para a inclusão no esporte”, conta Smith.
A GFSN também registra com precisão britânica a ocorrência de gritos e cânticos homofóbicos nos estádios – e faz campanha permanente contra eles. “Na temporada passada, os torcedores do Brighton & Hove Albion FC sofreram com cantos homofóbicos em 72% dos jogos que disputaram. Nós documentamos isso e enviamos à FA (Football Association, a CBF inglesa), que ainda não tomou nenhuma atitude. Mas nós continuamos pressionando”, diz.
No próximo ano, a Copa do Mundo promete ser palco de discussão sobre homossexualidade – pelo menos em São Paulo, onde mais de 40 mil pessoas são esperadas para acompanhar a transmissão dos jogos nos telões da Fan Fest, no Vale do Anhangabaú, centro da cidade. Ali, a prefeitura planeja realizar uma intervenção para discutir homofobia, com direito a exibição de vídeos em telas e distribuição de folhetos sobre o tema. Outra ação que está sendo estudada é transmitir os jogos em telões no Largo do Arouche, um “point” LGBT da cidade, para esses torcedores.
Um pouco de história: em plena ditadura, nascia a Coligay
A tentativa de formar uma torcida organizada gay não é novidade no futebol brasileiro. Foi no dia 10 de abril de 1977, quando o Grêmio foi disputar uma partida pelo Campeonato Gaúcho contra o Santa Cruz (RS), que a novidade estampava as arquibancadas do estádio Olímpico: cerca de 60 torcedores homossexuais impressionaram os demais pela festa que faziam. Era a Coligay, a primeira torcida organizada assumidamente gay do Brasil. A Coligay foi fundada por Volmar Santos, que hoje é colunista social do jornal O Nacional, de Passo Fundo (RS).
Gremista fanático, Volmar nunca deixou de frequentar o Olímpico. “Eu ia aos jogos e achava as torcidas muito quietas, sem animação nenhuma. Foi quando eu resolvi formar uma torcida organizada. Aí me veio a ideia de fazer uma torcida gay”, conta. A ideia surgiu quando ele administrava a boate Coliseu, em Porto Alegre, voltada ao público gay, que não tinha muitas opções na capital gaúcha. O nome Coligay vem do nome da boate. “Foi aí que eu mandei fazer uns caftãs, uma espécie de túnica com as cores do Grêmio, e fomos torcer no estádio. A nossa marca era nunca deixar de cantar, fazer festa, apoiar sempre o nosso time. E a cada jogo a gente inventava coisas diferentes”, relembra. A torcida ganhou fama de pé quente: em 1977, com a Coligay nas arquibancadas, o Grêmio quebrou um jejum de oito anos sem títulos estaduais.
Naquele longínquo ano de 1977, o mesmo Corinthians chegou a convidar a torcida gay a prestigiar os seus jogos – e a Coligay esteve presente na quebra do jejum de 23 anos sem títulos do Timão. “Ganhamos fama de pé quente e o Vicente Matheus [ex-presidente do Corinthians] nos convidou. Assistimos o título do Corinthians contra a Ponte Preta de dentro do Morumbi, vestidos como gremistas”, recorda.
A Coligay durou cerca de seis anos, e acabou em 1983. “A torcida era muito centrada na figura do Volmar. Quando ele teve que ir para Passo Fundo, não teve uma liderança que conseguisse dar continuidade”, conta Leo Gerchmann, repórter especial do jornal Zero Hora, autor de um livro sobre a Coligay que deve ser lançado nos próximos meses.
Segundo Léo, a torcida enfrentou muita resistência por parte do Grêmio e da sua organizada Eurico Lara. “Temendo agressões, eu até coloquei o pessoal pra fazer karatê pra nos defendermos de possíveis ataques”, diz Volmar. Assim, na ocasião em que foram de fato atacados por torcedores do Gaúcho, clube de Passo Fundo, durante o Campeonato Gaúcho de 1977, a Coligay colocou os agressores para correr. “Com o tempo o clube e a própria torcida adotaram a Coligay. Alguns conselheiros gremistas até deram apoio financeiro à torcida. Acho uma página bonita da história do Grêmio, de aceitação da diferença”, diz Gerchmann. “Houve outras experiências de torcidas gays, coisas efêmeras no Cruzeiro, Fluminense e até no Internacional, que teve a Inter Flowers. E dois anos depois da Coligay, teve a Fla-Gay fundada pelo carnavalesco Clóvis Bornay, apesar dele ser vascaíno”.