Fachada do bar Stonewall Inn em 2008 (Foto: Johannes Jordan/Wikimedia Commons) |
Há 50 anos, os frequentadores do bar Stonewall Inn, nos EUA, resolveram dar um basta nas frequentes batidas policiais que aconteciam no local, e acabaram virando um marco de resistência
Em um vídeo que viralizou na internet, em 2018, o apresentador Ratinho faz uma crítica ao que ele considera anacronismo nas novelas da TV Globo. “A Globo colocou viado até em filme de cangaceiro, gente? Naquele tempo não tinha viado não. Você acha que tinha viado naquele tempo?”, questiona ele, referindo-se à minissérie de época Entre Irmãs, ambientada no cangaço nordestino. A resposta é: sim.
O fato de não aparecerem nos livros de história ou de não serem representados com frequência na dramaturgia não significa que gays, lésbicas, travestis, pessoas trans e intersexuais sejam uma invenção da Globo. O desconhecimento do apresentador só ilustra um dos pontos mais dramáticos da cultura LGBT+: a marginalização.
Em 1969, no entanto, isso começou a mudar. Apesar de já existirem movimentações nesse sentido, a Revolta de Stonewall se tornou o marco mais representativo das lutas pelos direitos LGBT+. Naquele ano, há cinco décadas, os frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, decidiram se rebelar contra a opressão policial que frequentemente assolava o público do lugar.
Naquele tempo, não ser heterossexual era crime nos Estados Unidos. Nas ruas de Nova York, quem não vestisse pelo menos três peças de roupa “apropriadas ao seu gênero” poderia ser preso. E meias não contavam. Não à toa, muitas drag queens aboliram o uso de saltos altos para poder correr melhor da polícia quando necessário. Devido à “conduta indecente”, a State Liquor Authority (SLA) também proibia a venda de álcool para estabelecimentos considerados gays.
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Quem viu nisso uma oportunidade de negócio foi a máfia italiana. Em 1966, Tony Lauria, conhecido como Fat Tony, comprou o então restaurante localizado no bairro de Greenwich Village e o transformou no bar Stonewall Inn. O poderoso chefão pagava até 1200 dólares por mês para evitar a fiscalização e vendia bebidas aguadas a um preço exorbitante.
O bar não era um paraíso. Mas era o paraíso possível para muitas pessoas. “Era um lugar seguro para nós”, afirmou ao The New York Times Mark Segal, um frequentador daquela época. “Quando as pessoas entravam no Stonewall, elas podiam andar de mãos dadas, se beijar e, o mais importante, era possível dançar."
Se antes, viver em guetos era uma forma de proteção, depois do dia 28 de junho de 1969, mostrar-se passou a ser a forma mais eficaz de se defender. Diferente de outros dias em que apareciam mais cedo, quando o bar estava menos cheio, naquele dia, os policiais surgiram num horário de maior movimento — desrespeitando o acordo com os mafiosos. Segundo os frequentadores, a polícia entrou ameaçando prender os empregados por vender bebidas ilegais e prendendo vários clientes por conta das vestimentas “inapropriadas”. O público (incluindo o do lado de fora do bar) reagiu violentamente, fazendo provocações e atirando qualquer objeto que estivesse à mão.
Fachada do bar Stonewall Inn em 1969 (Foto: Diana Davies/ New York Public Library/Wikimedia Commons) |
"A dor, a raiva, a frustração, a humilhação, a constante insistência, a constante agitação que causaram em nossas vidas: agora era a hora de se livrar disso tudo", disse o frequentador Martin Boyce ao The New York Times. "Não precisava machucar um policial, não precisava machucar ninguém, só precisava gritar.” Nenhuma morte foi registrada, e ninguém sabe o número de feridos durante o ato.
A revolta não foi um caso isolado. A revolução sexual promovida pelo movimento hippie encontrou seu ápice justamente em 1969, quando, em agosto daquele ano, o festival de Woodstock reuniu um público cada vez mais descontente com os excessos do Estado e a violenta Guerra do Vietnã. Além disso, em 1968, o pastor Martin Luther King Jr., um dos maiores nomes na luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, foi assassinado. Os Estados Unidos eram um barril de pólvora.
Em 1970, dez mil pessoas se reuniram para comemorar um ano da revolta, dando início às modernas paradas LGBT+ que acontecem em vários lugares do planeta, com destaque para a de São Paulo, que é considerada a maior do mundo e, em 2019, reuniu três milhões de pessoas. “As paradas do orgulho LGBT, que nós temos no Brasil hoje, me parecem que são a grande expressão daquilo que Stonewall pretendia do ponto de vista de liberação homossexual”, explicou o escritor João Silvério Trevisan, em depoimento ao programa Fantástico, da Globo. “As paradas LGBT são grande demonstração de amor.”
Fachada do bar Stonewall Inn em 1969 (Foto: Diana Davies/ New York Public Library/Wikimedia Commons) |
Entre os vários participantes da revolta, dois nomes vêm recebendo um reconhecimento tardio: Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera. Lendas e boatos cercam a participação das duas no dia da revolta: alguns dizem que elas teriam sido as primeiras a jogar pedras nos policiais, outros afirmam que elas sequer estavam no bar. Em um ensaio escrito para a revista Them, a poeta e ativista trans Chrysanthemum Tran escreveu que a discussão é irrelevante, visto que o ativismo (tanto trans quanto o racial) delas não começou, nem terminou, naquele dia. A revolta foi um levante coletivo. E ambas tiveram um papel chave nisso.
Em maio de 2019, a prefeitura de Nova York anunciou a construção de um monumento em comemoração aos 50 anos do conflito. Trata-se do primeiro monumento público permanente em homenagem a mulheres trans no mundo. “As comunidades transgênera e não-binária estão se recuperando de ataques violentos e discriminatórios em todo o país. Aqui, em Nova York, estamos mandando uma mensagem clara: nós as vemos por quem vocês são, nós celebramos com vocês e vamos protegê-las”, afirmou o prefeito Bill de Blasio, durante o anúncio. “Esse monumento a Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera vai honrar seus papéis pioneiros na luta pelos direitos humanos em nossa cidade e por todo mundo.”
O próprio bar Stonewall Inn — que funciona até hoje no mesmo lugar, mas sem as bebidas adulteradas — foi tombado como patrimônio nacional. Além dos shows de drag queens, música pop em alto volume e aparições ocasionais de estrelas como Madonna e Taylor Swift, quem entra pela portinha estreita, encontra nos dois andares do lugar, a mesma atmosfera diversa dos anos 1960. Mas, desta vez, com uma infinidade de turistas que veem na dança, na música e na diversão uma forma de homenagear todos aqueles que lutaram antes deles.
Fonte: Revista Galileu
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