segunda-feira, 14 de maio de 2018

Feminismo não é Vitimismo!


Texto de *Mariana Selister Gomes para as Blogueiras Feministas.

Nos últimos dias, assisti ao filme “Negação” (Mick Jackson, 2016), o qual baseia-se na história real da disputa judicial entre a historiadora Deborah Lipstadt e o escritor David Irving, quando este a acusa de difamação, por ela denunciá-lo publicamente como um negador do holocausto. O filme me emocionou, tanto pela história que registra, quanto por perceber o quanto ainda hoje precisamos lutar contra os negacionistas – sejam eles negadores do holocausto, do racismo ou do machismo.
Na Universidade Federal de Santa Maria, recentemente, dois grupos entraram nesta luta, ao enunciar o slogan: “Feminismo não é Vitimismo”. Ambos buscaram denunciar a negação do machismo, que se oculta na alcunha de “vitimista” dada ao feminismo. Um foi protagonizado pelo Coletivo “Manas RI” e outro pelo Programa “Gritos do Silêncio” da Rádio da Universidade.
Somo, aqui, meu grito: Feminismo não é Vitimismo! E explico-o nas seguintes linhas. A categoria “vitimização” ou “vitimismo” tem emergido nas universidades para se referir a luta feminista e anti-racista. De certa forma, esta é uma versão acadêmica da “categoria” “mimimi”, difundida por grupos conservadores nas redes sociais. Por seu turno, legitimamente, os movimentos feministas (entendidos aqui no plural, abarcando mulheres negras, trans, lésbicas…) reagem, por toda a parte, a esta categoria, entrando em uma disputa simbólica para demonstrar que sua luta não é mimimi/vitimismo – como aconteceu na UFSM.
Ressalto que o conhecimento acadêmico não é totalmente neutro e insere-se nestas disputas de saber-poder – como demonstraram teóricas e metodólogas feministas (como Sandra Harding e Donna Haraway), teóricos decoloniais (como Aníbal Quijano e Edgardo Lander) e filósofos pós-estruturalistas (como Michel Foucault). Sendo assim, a objetividade é garantida pelo debate de ideias de forma transparente, no qual é preciso responder a duas questões: 1. Para que(m) serve o conhecimento produzido? 2. Quem está produzindo esse conhecimento?
Neste sentido, podemos questionar quem está produzindo um discurso acadêmico sobre “vitimização/mimimi” e por que o está produzindo – sendo garantida a liberdade científica e a liberdade de expressão em produzir este conhecimento, desde que estejamos alertas para possíveis abusos destas liberdades, os quais ocorrem quando esta é usada para propagar discursos de ódio (como no caso relatado no filme mencionado anteriormente).
No que tange ao discurso acadêmico sobre “vitimismo”, tomo a liberdade de questioná-lo, segundo diferentes pontos de vista, resumidos a seguir:
1) A partir da Sociologia: desde seus primórdios como Ciência, com as proposições de Augusto Comte e de Émile Durkheim, no século XIX, a Sociologia ancora-se em evidências empíricas para análise de fatos sociais. Em que pese todos os debates na área ao longo dos séculos, a demonstração concreta da realidade social continua a ser fundamental. Neste sentido, diversos dados estatísticos constatam o fato de que as mulheres são vitimadas na sociedade atual. Cito, por exemplo, os dados do Datafolha e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados pela grande mídia, os quais demonstram que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, e a cada hora, 503 mulheres são vítimas de agressão física.
2) A partir da Ciência Política: teóricos/as como Nancy Fraser e Axel Honneth tem demonstrado que, a partir de meados do século XX, uma nova pauta política emerge – a luta por Reconhecimento. Grupos sociais historicamente marginalizados (como mulheres e negros) deixam de concentrar suas lutas em conquistas objetivas, para abordar, também, uma pauta subjetiva, lutando pelo seu reconhecimento social e pelo reconhecimento dos problemas sociais, como o racismo e o sexismo. Neste âmbito, torna-se importante disputar e legitimar a categoria vítima, para que a sociedade reconheça o problema e adote medidas reparatórias.
3) A partir da Antropologia: esta área das Ciências Sociais traz à tona a importância de a ciência olhar para o ponto de vista do “nativo”. Ou seja, para a Antropologia, os/as agentes sociais precisam ser ouvidos e seus sentidos precisam ser evidenciados. Desta forma, a categoria vítima, entendida como categoria nativa, deve ser analisada pela importância que ela tem para àqueles/as que a enunciam e reivindicam. Ou seja, se as mulheres estão anunciando-se vítimas, a Ciência deve ouvi-las e compreender o sentido conferido por elas. Ainda dentro da Antropologia, há quem questione o excesso de foco na categoria vítima, bem como, o pouco destaque dado a agência das mulheres. Ainda assim, não é negada a estrutura social que vitima as mulheres.
4) A partir da Filosofia: seguindo uma linha de pensamento sob influência de Hannah Arendt, poder-se-ia refletir que a legitimação social da categoria vítima por determinado grupo social não pode (em um sentido abstrato relacionado com valores universais) servir como justificativa para determinados tipos de ação. Neste sentido, seria possível questionar algumas ações de certos grupos dentro do feminismo. Ainda assim, isto não se configuraria em deslegitimação da categoria vítima, tampouco, em legitimação da categoria “vitimismo”, mas em problematização sobre os usos desta categoria tendo em vista algumas consequências, para outros grupos e para o próprio movimento. Seguindo outra linha filosófica, ancorada na problematização nos contextos de produção de verdades (desde Nietzsche, passando por Foucault, Deleuze e Agamben), poder-se-ia refletir que a “vítima” não existe de maneira ontológica. A “vítima” seria uma construção social e histórica. Contudo essa construção está ancorada em hierarquias de poder. Isto significa, sobretudo em Foucault, que estão em jogo as disputas pelas verdades, as quais tem implicações concretas. Dizer que algum grupo é ou não vítima não significa considerar um grupo vítima a-historicamente, significa compreender o jogo de forças sociais no contexto atual que permite, ou não, a enunciação de um grupo como vítima, bem como, perceber quem ganha ou perde com essa enunciação. Ou seja, quem ganha e quem perde com a legitimação ou a deslegitimação das mulheres como vítimas? Certamente, a luta contra machismo ganha com a percepção coletiva de que o machismo existe e que este vitima as mulheres.
5) A partir da Teoria Feminista e dos Estudos de Gênero: desde a clássica Simone de Beauvoir, diferentes áreas do conhecimento científico têm demonstrado que “ser mulher” e “ser homem” são construções sociais que vão além de determinantes biológicos. Como construções sociais, os papéis de gênero, como definidos por Joan Scott, estão imersos em relações de poder (que operam nas dimensões política/institucional, material, normativa, cultural e subjetiva). Nas relações de poder (mesmo na perspectiva da microfísica foucaultiana) sempre há uma hierarquia, um exercício de subjugação do outro. Nas relações de poder de gênero, historicamente, as mulheres foram as maiores vítimas desse exercício de poder patriarcal. Destacando-se que o patriarcado é uma estrutura determinante da sociedade moderna, como demonstra Carole Pateman. Nesse campo, a categoria “vitimização/mimimi” parece impensável.
Por fim, entendo que é preciso fazer ecoar que: “Feminismo não é vitimismo!”
Autora
*Mariana Selister Gomes é Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (DCS/UFSM) e Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS). É Pesquisadora Associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIEM/UFRGS). É Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (CIES / ISCTE-IUL), com Tese, aprovada com distinção e louvor, sobre os Imaginários Coloniais e Sexistas em torno da “Mulher Brasileira” em Portugal e as diferentes formas de Resistência e Reexistência dessas Mulheres. Na época em que viveu em Portugal, foi uma das coordenadoras do “Manifesto contra o Preconceito às Brasileiras em Portugal”. Já atuou como pesquisadora da (infelizmente extinta) Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, investigando a Violência Simbólica contra Mulheres. Teve seu ensaio sobre Imaginários e Violência contra as mulheres premiado pela ONU-MULHERES.

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