Muito antes da internet e da publicidade direta ao consumidor, a profissão médica tentava tranquilizar as pessoas sobre suas preocupações de saúde. Claro, fadiga e dores de cabeça poderiam ser sintoma de um tumor cerebral; certo, tosse poderia ser um sintoma de câncer de pulmão. Mas a maioria dos médicos tentava atenuar o medo – ao invés de semeá-lo. Lembra do “tome duas aspirinas e me ligue pela manhã?”
Projetemos isso para os “guias de sintomas” online de hoje, testes para ver se você tem uma determinada doença e exortações para que vá a seu médico, mesmo que se sinta bem. Desde que a indústria farmacêutica descobriu que medo de doenças e até a hipocondria vendem drogas, as novas doenças, sintomas e riscos com que as pessoas precisam se preocupar parecem não ter fim.
Vender sintomas para pessoas sugestionáveis tem sido uma mina de ouro para as grandes transnacionais farmacêuticas desde que começaram a fazer propaganda diretamente ao consumidor, no final dos anos 1990. Graças a tal marketing, que na verdade “vende” doenças para construir a demanda, milhões de pessoas que já estiveram muito bem têm agora alergias de estação, Gerd (Doença do refluxo gastroesofágico), distúrbio de atenção, distúrbio de dor e outras “doenças”.
Não se trata de ignorar sofrimento legítimo. Mas para muita gente, a relação com os medicamentos prescritos é melhor expressa na camiseta que diz “Tomo aspirina para a dor de cabeça causada pelo Zyrtec, que uso contra a rinite alérgica que adquiri com o Relenza para a dor de estômago da Ritalina que eu tomo para o déficit de atenção causado pelo Scopoderm, que uso para o enjôo que me dá o Lomotil, que tomo para a diarréia causada pelo Xenical que tomo para perder o peso ganho com o Paxil que tomo para a ansiedade que me dá o Zocor, que uso para o colesterol alto, porque praticar exercício, boa dieta e tratamento quiroprático regularmente dão muito trabalho” (uma camiseta que nem pode ser vestida por gente que usa números pequenos…)
Eis algumas das estratégias que a indústria farmacêutica usa para manter o público comprando drogas:
1. Medo de envelhecer e perder o apetite sexual
As terapias de de reposição hormonal (TRH), que milhões de mulheres fizeram até cerca de dez anos atrás, eram oficialmente vendidas para acabar com as ondas de calor e manter os ossos fortes. Mas, extraoficialmente, era difundidas como um modo de manter-se jovem e sexy. Anúncios publicitários de terapia de reposição hormonal precoce diziam às mulheres que elas tinham “sobrevivido aos seus ovários” e não se mantinham à altura de seus maridos, que queriam mulheres com aparência mais jovem. Quando descobriu-se que TRH aumentava o risco de ataque do coração e câncer (“sentimos muito por isso”), as drogas para fortalecer os ossos assumiram o papel de portadoras mensagem da indústria farmacêutica (“não fique velha!”) para as mulheres. Agora a indústria está dizendo aos homens que eles também necessitam de terapia de reposição hormonal para sua “baixa testosterona” e para manter sua potência sexual. A TRH masculina não parece mais segura que a feminina.
2. Medo de sintomas que parecem benignos
Antigamente, pessoas com azia tomavam Eno, Alka Seltzer ou Sonrisal e juravam não comer muito. Não se preocupavam se tinham refluxo gastroesofágico (Gerd), estavam a caminho de um câncer do esôfago; nem tomavam inibidores de bomba de prótons para o resto de suas vidas. Da mesma forma, embora a depressão possa causar um sofrimento inimaginável, é também verdade que a tristeza ocasional – a dor causada por problemas no casamento, na família, no trabalho, pela situação financeira ou mesmo a perda de alguém amado – faz parte da vida. Mas o marketing das grandes farmacêuticas sugerem que você deveria ir correndo ao médico, no instante que sentir-se mal; e se pendurar em “pílulas da felicidade” por uma década ou mais. Claro que o grande sucesso da indústria ao produzir medo em torno de sintomas benignos está convencendo pais e professores de que crianças saudáveis e muito ativas estão sofrendo de ADHD (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade).
3. Medo de novas doenças
Quem se lembra da Síndrome do Atraso das Fases do Sono, ou da Síndrome das 24 Horas em dormir, diagnosticadas para pessoas que provavelmente não dormiam suficientemente? Doenças obscuras sobre as quais a indústria farmacêutica “aumenta o alerta” não são inventadas – mas elas são tão raras que não seriam jamais tratadas em publicidade, a menos que a indústria estivesse tentando criar “demanda” para medicamentos caros – inclusive porque não há exame de sangue ou de laboratório confirmando um diagnóstico. Há pouco, a AbbVie, uma empresa farmacêutica norte-americana, lançou duas campanhas, promovendo drogas de alto custo, para convencer pessoas com dor nas costas que eles tinham espondilite anquilosante; as pessoas com diarreia de que tinham insuficiência pancreática exócrina., replete de sites ajudando-as a discernir que têm a doença por seus sintomas. Será que as pessoas com sintomas ou doenças realmente precisam que a indústria farmacêutica lhes diga quando ir ao médico e o que elas têm?
4. Medo de que seus filhos não sejam normais
O ADHD (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) não é a única receita da indústria farmacêutica para medicalizar e monetizar a infância. As birras são agora chamadas “Transtornos de Humor”. Graças à “psicofarmacologia pediátrica”, as crianças estão cada vez mais diagnosticadas com transtorno desafiador opositivo (DDO), manias mistas, fobias sociais, distúrbios bipolares, transtornos de conduta, depressão e transtornos do “espectro”. Por que a indústria gosta de crianças? Crianças são pacientes submissos que farão o que seus pais, professores e médicos mandarem, diz o ex-promotor de vendas da indústria farmacêutica Gwen Olsen, autor de Confessions of an Rx Drug Pusher [Confissões de um Vendedor de Drogas]. Eles são os “tipos de paciente ideal porque representam prescrição contínua, obediente e longeva”. Em outras palavras, eles vão ser pacientes ao longo da vida e renovar o estoque de clientes para a indústria. Não é exagero. Além disso, além de consumirem drogas pesadas e desnecessárias, muita crianças apresentarão reações que exigirão mais drogas, para tratar dos efeitos colaterais.
5. Medo de que sua droga deixe de produzir efeitos
Desde que as grandes indústrias farmacêuticas descobriram que era fácil acrescentar mais drogas a uma droga original — seja para crianças ou pessoas com doenças mentais –, começou a era das drogas “agregadas” e das condições “resistentes a tratamento”. Seu remédio pode não funcionar, dizem novas campanhas do Alility ou Seroquel, porque você precisa de uma segunda droga para ativar a primeira e torná-la mais efetiva. A redefinição da depressão, para vender medicamentos, foi particularmente furtiva. Médicos financiados pela indústria reclassificaram a doença como uma condição para a vida toda, que requer uso permanente de drogas. E há mais! Quase sem evidência médica alguma, a depressão foi considerada “progressiva” — o que, é claro, ampliou seu potencial de produzir medo. “À medida em que o número de grandes episódios depressivos aumento, o risco de episódios subsequentes é previsível”, alertava um artigo denominado Neurobiology of Depression: Major Depressive Disorder as a Progressive Illness [Neurobiologia da Depressão: o Grande Distúrbio Depressivo como Doença Progressiva], publicado no site médico Medscape, e ladeado por anúncios do antidepressivo Pristiq.
6. Medo de doenças silenciosas
E se você não apresentar sintomas e estiver se sentindo bem? Isso não significa que você não sofre de condições silenciosas, que podem estar ameaçando sua saída sem que você saiba. Nenhuma pílula, na história, foi tão bem sucedida como a estatina Lipitor, com sua campanha de TV “Know Your Numbers” [Conheça seus Números] e o medo crescente de ataques cardíacos relacionados ao colesterol. Milhões de pessoas usam estatinas para proteger contra o medo de doenças cardíacas silenciosas, embora recentemente, em alguns estudos, o colesterol tenha sido excluído, como risco central de doença cardíaca (ainda bem que a patente do Lipitor expirou…). Também as campanhas da indústria farmacêutica que amedrontam as mulheres sobre perda silenciosa de ossos venderam drogas anti-oesteosporose como Fosamax, Boniva e Prolia, ao convencerem mulheres que algum dia, sem nenhum aviso, seus ossos em processo de enfraquecimento irão se partir. A previsão era verdadeira, com um pequeno detalhe: algumas das mulheres cujos ossos estalaram estavam usando drogas anti-osteosporose, cujos efeitos colaterais passaram a incluir fraturas!
Fonte: Pragmatismo Político
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