domingo, 5 de abril de 2020

Desafios após a aprovação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST)


Centro de Lançamento de Alcântara. Foto: Jornal Pequeno

Por Ronaldo G. Carmona* e Allan Kardec Barros**

Em meio a grave crise de saúde pública que vivemos há mais de um mês no país – e que por óbvio concentra todas as atenções e energias dos brasileiros -, um assunto não menos importante – por relacionar-se diretamente ao debate sobre o futuro do desenvolvimento nacional e do próprio Maranhão –, ressurgiu esta semana, infelizmente com um viés negativo. 

Referimo-nos à publicação, no Diário Oficial da União, no último dia 26, de resolução do CD-PEB (Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro), sobre aquele que é certamente um dos temas de maior sensibilidade neste debate, a questão fundiária relacionada às famílias que habitam o território desapropriado nos anos 1980 para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, do qual atualmente menos de uma sexta parte foi efetivamente ocupada. O viés negativo a que nos referimos deriva essencialmente de uma falha de comunicação no preparo e na organização da nova fase que se abre após a aprovação do AST (Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, assinado em 2019 entre o Brasil e os Estados Unidos). 

Sim, abre-se uma nova fase após a aprovação do AST: a fase de planejar a efetivação das enormes potencialidades derivadas da transformação do atual Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) no Centro Espacial de Alcântara (CEA), um “espaço-porto de classe mundial”, que traga associado a ele efeitos de transbordamento que permitam inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento no Estado, seja da logística e da infraestrutura – a começar de uma nova ferrovia e de um novo porto –, bem como de um polo de empresas de alta base tecnológica, que por sua vez exigirá recursos humanos maranhenses, que já começam a ser formados na Universidade Federal do Maranhão.

Não se trata de um sonho ou de uma utopia; centros de lançamento do mesmo nível pretendido para o CEA, mundo a fora, tais como Kourou (Guiana “francesa”), Taiuan (China), Baikonur (Usbequistão/Rússia) ou Cabo Canaveral (Estados Unidos) – todos de potencial inferior ao de Alcântara, dada sua excepcional condição geográfica -, transbordam desenvolvimento para o seu entorno geográfico. O CLA é uma exceção: desde o seu surgimento em meados dos anos 80, resume-se a uma instalação militar e não a um centro espacial, como os citados, dedicados a lançamentos de artefatos do amplo e bilionário mercado espacial de lançamento de satélites comerciais. 

Alcântara pode representar para o Maranhão o que São José dos Campos representou para o Vale do Paraíba, em São Paulo, que a partir da instalação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) na década de 50 do século passado, tornou-a uma região de intenso desenvolvimento industrial. Na verdade, Alcântara do século XXI pode representar aquilo que foi há cerca de 250 anos, por ocasião da Primeira Revolução Industrial, quando sua indústria têxtil a tornou uma das regiões de maior prosperidade no mundo. Hoje, em meio à emergência da Quarta Revolução Industrial – que possui nos sistemas espaciais parte essencial - novamente este papel de polo industrial baseado na inovação poderá ser destinado a Alcântara. 

Contudo, para que isto ocorra, é preciso acelerar o planejamento da realização deste imenso potencial. Ele “não cairá do céu”; exigirá estudos aprofundados e planejamento sistemático, que demandarão a mobilização da inteligência nacional, em especial junto às Universidades. 

Este planejamento passa por pelo menos três iniciativas, já em curso ou por serem deflagradas. 

A primeira é a elaboração do que podemos chamar de “plano de negócios” relacionado à efetivação de lançamentos comerciais no “novo” CEA. Para isso, estão sendo feitas modelagens e estudos relacionados ao mercado de lançamentos, bem como sendo recebidas e contactadas empresas de distintos países que se interessam em utilizar comercialmente as amplas vantagens da localização geográfica de Alcântara nesta nova fase. 

A segunda iniciativa nasce da oportunidade derivada da instalação do novo CEA como uma “mola propulsora” de desenvolvimento nacional e, especialmente, regional. Trata-se do desafio de planejar, por meio da realização de estudos multidisciplinares, a realização de uma série de potencialidades adormecidas em relação ao território do Maranhão. Adicionalmente, em buscar o aproveitamento de sua profunda hinterlândia – área de influência projetada ao interior do país – que poderá oferecer um mar ao Centro Oeste do país, por conta do prolongamento da Ferrovia Norte Sul e de sua conexão com outros modais, como o hidroviário e o tradicional rodoviário. Esse conjunto voltou a entrar no radar a partir deste fato novo que é a expectativa que se criou em torno da aprovação do AST. 

Esse desafio envolve aspectos logísticos e de sistemas intermodais de transportes (inclusive relacionados ao Porto, ao Aeroporto e ao acesso rodoviário e ferroviário a Alcântara); de escoamento do agronegócio, de combustíveis e de minérios; da realização das imensas potencialidades energéticas do MA; da criação de um polo de empresas de alta tecnologia (polo industrial-tecnológico) associada à formação de recursos humanos de alto nível; e de seus aspectos de segurança nacional, inclusive relacionado à organização da Segunda Esquadra da Marinha do Brasil e, em seu conjunto, de seus efeitos ligados à mobilização nacional. 

Por fim, uma terceira iniciativa refere-se ao desenvolvimento econômico e social de Alcântara, visando a elevação da qualidade de vida dos brasileiros que lá vivem. Falamos da elaboração do chamado PDI – Plano de Desenvolvimento Integrado de Alcântara, uma espécie de “plano diretor” ampliado que proporá uma série de iniciativas por parte de vários ministérios e agências federais, em questões que se estendem desde o turismo à organização do território, da organização de um distrito industrial à solução do problema fundiário, passando por diversos outros temas associados. Obviamente, é inconcebível que a discussão deste PDI ocorra tão somente nos refrigerados gabinetes de Brasília. Trata-se de um debate que necessariamente deverá envolver o governo do Estado e a prefeitura da Alcântara, os setores produtivos maranhenses e a população da cidade, inclusive aqueles que habitam a área destinada ao funcionamento do CEA. 

Estas três iniciativas representam uma segunda fase, inaugurada e possibilitada pela aprovação em 2019 do AST. Afinal, cabe compreender que a efetivação das potencialidades do CLA não se esgotou com a aprovação do AST. Ao contrário, este é apenas um primeiro passo; sem esta nova fase, o AST será apenas “um pedaço de papel”. Nesse sentido, e é disso que se trata, as três iniciativas acima citadas se complemntam e buscam traçar planejamento desta segunda etapa, visando uma terceira fase que é a materialização e a execução das amplas potencialidades relacionadas à constituição do CEA. 

Neste contexto é que se deve compreender a inoportuna publicação da Resolução no último dia 26. Nesse sentido, há uma premente necessidade de modificá-la, aperfeiçoando-a a uma visão mais ampla, tendo em vista um detalhamento de condições para o desenvolvimento econômico e social para Alcântara – numa região com um dos menores IDH do país. Como nunca isso se faz necessário; estruturar um moderno CEA mantendo tal “status quo”, em meio a tantas potencialidades que saltam à vista, seria uma postura lamentavelmente reacionária e de enorme insensibilidade para com os brasileiros que lá vivem. 

Assim, em especial, o PDI precisará equacionar a questão fundiária, que rigorosamente comparece como problema importante desde os primórdios da implementação do CLA em meados da década de 80. É este planejamento que deve ser desenvolvido para inaugurar linhas de ação visando sua superação – base para o destravamento das potencialidades do CEA. 

Este é um grande desafio nesta fase pós aprovação do AST: equacionar as demandas legítimas das famílias que vivem na área atribuída ao CEA com o interesse estratégico do país e do Maranhão de ter um Centro Espacial “de classe mundial” que transborde desenvolvimento para seu entorno geográfico. Para isso, estudar e planejar as ações, consultando amplamente os atores interessados e alinhando-os com os grandes interesses estratégicos do país e de seu desenvolvimento é o caminho. 


(*) Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG) e professor convidado do Programa de Pós Graduação em Engenharia Aeroespacial da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foi Chefe da Assessoria Especial de Planejamento do Ministério da Defesa. 





(**) Professor de Engenharia Elétrica, Engenharia Aeroespacial e Biotecnologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ex-Pró Reitor de Pesquisa e Pós Graduação da UFMA, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo. As opiniões aqui apresentadas não necessariamente representam as das instituições mencionadas.





Fonte: Dos próprios autores.

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