quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Como eu cresci achando natural a poluição da Vale em casa, na praia, na vida. Por Marcos Sacramento



Posso afirmar que a poluição da Vale faz parte do imaginário da minha infância. Nascido em Vitória, desde os 10 anos de idade moro em Jardim Camburi, bairro onde se localiza o Complexo de Tubarão. Por mais de 20 anos morei em um condomínio que faz limite com os muros do complexo, formado por um porto gigantesco e oito usinas de pelotização.
Por causa dessa proximidade, cresci acostumado com a presença brilhante do pó de minério dentro de casa ou na areia de praia. Apesar de poluída, a praia de Camburi era um quintal para mim e meus amigos. Fica em uma baía de onde se avista, olhando para o norte, o porto e as usinas expelindo vapores para atmosfera. Costumávamos praticar pesca submarina bem pertinho do porto, em um ponto com águas claras e corajosas e escassas lagostas.
Para isso precisávamos atravessar um trecho da praia bastante afetado pelas atividades da empresa. Eram faixas de areia negra e brilhantes, impregnadas de minério. A água do mar, sem ondas por causa da proteção dos recifes, às vezes ficava com uma coloração rosada e turva. As folhas das árvores eram cinzentas, cobertas de pó.
Mesmo assim eu não via a Vale como um monstro destruidor da natureza e sim um dos principais motores da economia da cidade. Era como uma vizinha amigável mas um pouco espaçosa, que provocava alguns incômodos como emitir pó preto e fumaças com conteúdo suspeito.
Para quem cresceu em apartamento e não viu a natureza ceder espaço para as indústrias, a Vale, com seus ruídos na madrugada, as colunas de fumaça e o onipresente pó de minério, era só mais um elemento do cotidiano.  Além do mais, a empresa construíra um parque bem agradável no bairro e mantém um dos únicos museus a inserir a Grande Vitória no circuito nacional das artes.
Até que veio o rompimento da barragem em Mariana e a onda de rejeitos descendo pelo moribundo Rio Doce em direção ao oceano.  Ali lembrei que a empresa não é superlativa só na estrutura e nos lucros, mas também no poder de destruição.
O Complexo de Tubarão e o pó preto são a ponta final do processo de produção. Se por um lado os impactos ambientais das operações do Complexo de Tubarão são mais sutis que nas regiões onde ocorre a mineração, o mesmo não pode ser dito quanto aos impactos da onda de rejeitos.
Embora não provoque a destruição de estruturas físicas, a lama tóxica poderá contaminar a foz do Rio Doce, local de desova de tartarugas e povoado por animais de topo de cadeia como baleias e tubarões.
Caso desça em direção ao sul, a lama poderá atingir três importantes unidades de conservação: a Reserva Biológica de Comboios,  a Área de Proteção Ambiental Costa das Algas e Refúgio da Vida Silvestre de Santa Cruz. É possível que atinja a costa de Vitória, contaminando com metais pesados o manguezal de onde se extrai os ingredientes da tradicional torta capixaba.
Dias atrás, fui pegar uma praia na Ilha do Boi, mais limpa e aprazível que Camburi. Fica em um bairro de classe alta, onde, dizem, Sebastião Salgado tem uma casa. Meu mergulho na água calma e excepcionalmente clara naquele dia foi melancólico e senti a tragédia de Mariana se aproximando. Temi que em poucos dias eu não poderia mais nadar com a mesma tranquilidade.
Com a corrente de lama tóxica cada vez mais perto do mar, o que chamam de “Fukushima Brasileiro” deixou de ser uma catástrofe distante para se tornar uma ameaça real.
Existe uma pequena chance de que a lama tóxica fique no rio e não provoque danos no mar, caso contenção na foz do Rio Doce que a Samarco foi obrigada a fazer funcione. Mesmo que dê certo, o estrago já foi feito.
Se as previsões de especialistas se confirmarem, uma geração de crianças das áreas afetadas pelo desastre crescerão como eu cresci. Acostumados com rios ou praias sem vida, vendo a poluição como algo natural no ambiente onde vivem.
Marcos Sacramento
Sobre o Autor
Marcos Sacramento, capixaba de Vitória, é jornalista. Goleiro mediano no tempo da faculdade, só piorou desde então. Orgulha-se de não saber bater pandeiro nem palmas para programas de TV ruins.

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