terça-feira, 30 de abril de 2024

Uberização deteriora saúde de motoboys


 (Foto: revista Duas Rodas)

Enquanto a expectativa em torno da regulamentação do trabalho de motofretistas (motociclistas que fazem entregas de mercadorias) por aplicativo tem atraído a atenção de diversos setores da sociedade, as discussões sobre a questão se mantêm restritas a seus aspectos trabalhistas, previdenciários, legais e tecnológicos. À margem dessa conversa, a saúde pública segue arcando com o custo principal da uberização: cuidar de suas vítimas. As evidências do impacto para a saúde desse trabalho “sob demanda” – condição em que a pessoa fica disponível para ser convocada quando a empresa determinar – estão no Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado.

A obra, que chega para ampliar esse debate, traz os primeiros resultados de uma pesquisa da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da Unicamp empreendida em 2023 com 200 motofretistas de Campinas. Visto que a uberização diminuiu o salário e as proteções legais de toda a categoria dos entregadores, o estudo abrangeu trabalhadores que têm como principal (ou única) fonte de renda as corridas via aplicativos e também os motoboys que não dependem das plataformas digitais para obter seu sustento. “É preciso qualificar essa discussão, do ponto de vista da cidadania, e pensar sobre o direito de viver dignamente e prover dignidade para a família, como está posto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Refletir sobre como nós, enquanto sociedade, toleramos esse arranjo laboral”, diz Silvia Santiago, diretora-executiva da DEDH e uma das autoras do dossiê.

"É preciso refletir sobre esse arranjo laboral"
Silvia Santiago - Diretora Executiva da DEDH

Os resultados da avaliação expõem um panorama mais complexo do que fazem crer as empresas da área. Dos 200 entrevistados, 90% eram do sexo masculino e quase 60%, negros – corroborando estudos anteriores que já haviam constatado esse abismo racial. Embora em média mais jovens, os que dependiam dos aplicativos para trabalhar como entregador apresentaram mais questões de saúde preocupantes, com a mesma proporção de medidas de pressão arterial alteradas do grupo geral (com média de idade maior) e menor ingestão de líquidos ao longo do dia. A situação dos primeiros se revelou pior também em relação à renda.

A socióloga Ludmila Abílio, pesquisadora visitante
 da DEDH: "O cenário é trágico"

“Vimos que quem tem mais tempo de trabalho adere menos aos aplicativos, porque já tem clientes e experiência, porque consegue enxergar a longo prazo. Ainda assim, suas condições laborais foram transformadas, pois a uberização impacta o setor como um todo, dado os processos de oligopolização alcançados por essas empresas. Quando as pessoas se uberizam da forma como está posta, suas vidas se degradam mais. Toda a categoria, porém, está submetida à deterioração da saúde. O cenário é trágico”, relata a socióloga Ludmila Abílio, pesquisadora visitante da DEDH e coautora do dossiê.

A fim de não relegar mais a um segundo plano o diagnóstico sobre a precarização do bem-estar físico e mental dos motoboys, o dossiê sugere medidas inspiradas nos modelos de cogestão e gestão participativa do próprio Sistema Único de Saúde (SUS), que visam proteger esses trabalhadores e transformar o progresso tecnológico em evolução social – e não em retrocesso. O documento recomenda também a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), atualizada frente às mudanças sociais, como base para o reconhecimento da subordinação desses trabalhadores às plataformas digitais. “Na forma como a situação está posta, enquanto o Estado se omite, há uma série de danos para o trabalhador e a sociedade. Nosso objetivo é oferecer instrumentos analíticos para quem quiser entrar na conversa, pois a uberização nos atravessa, pressionando o mercado como um todo. Suas características estão se generalizando”, diz a socióloga.



O estopim

Em janeiro de 2021, cerca de 220 motofretistas participaram de uma ação realizada pela Força-Tarefa da Unicamp contra a Covid-19. A expectativa, confirmada mais tarde, era encontrar muitos casos da doença nesse grupo. Já a surpresa foi o alto índice de desidratação entre os motoboys, dificultando a coleta de sangue necessária para fazer o teste da doença. “Devido a uma provável diminuição da fluidez [sanguínea], havia dificuldade em obter uma gota de sangue para o teste”, relata Santiago, que é professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e que coordenou aquela ação.

O quadro, explica a professora, resultava de uma rotina exaustiva em que o acesso a banheiros e a disponibilidade de água fresca para beber eram restritos. A descoberta, somada a outros achados inesperados da iniciativa, impulsionou a realização da investigação sobre as condições laborais e de saúde da categoria, ação realizada pela DEDH em 2023 – e que deu origem ao dossiê. “Não conhecíamos nenhuma atividade que imprimisse aquele modo de organizar o trabalho, em que a pessoa está subordinada a uma plataforma e vive em função disso”, justifica Santiago. Os resultados do novo estudo não apenas corroboraram as descobertas feitas na pandemia como também trouxeram achados surpreendentes, confirmando o dano provocado pela uberização na saúde e na qualidade de vida dos integrantes dessa categoria.

Acesse pelo QR code o dossiê


Apesar de atingir setores como a educação, a medicina, a comunicação e o direito, a oligopolização promovida por essas empresas favoreceu a uberização dos motoboys, pontua Abílio, que estuda as mudanças ocorridas nesse tipo de trabalho ao longo dos últimos anos. “Primeiro, jogaram o valor da entrega para o alto, para quebrar todas as concorrentes, o que conseguiram. Agora, essas plataformas têm meios técnicos de organizar 100 mil, 1 milhão de trabalhadores, popularizando e barateando o serviço.” Graças a esse modelo de negócio, as grandes corporações conseguiram manter à sua disposição milhares de pessoas no mesmo espaço de tempo. “Portanto não há necessidade de determinar uma jornada, o que torna qualquer regulação desnecessária. Para o direito e para o Estado, isso é um desafio.”

Totalmente legalizadas, essas empresas imprimiram uma operação calcada na informalização: sem regulamentação, a falta de transparência torna-se regra. “As regras perderam as formas estáveis e reconhecíveis”, resume Abílio. Não é necessário, por exemplo, disponibilizar os critérios utilizados para não recrutar um motoboy – mesmo que ele esteja acessível – ou para definir o valor de cada corrida. “Trata-se de uma relação diferente, de total instabilidade e imprevisibilidade”, afirma a socióloga. Nessa nova configuração, não há possibilidade de negociar. Ao trabalhador, cabe submeter-se.

Com a dataficação – processo em que qualquer ação, comportamento e situação são transformados em dados –, é possível prever comportamentos do trabalhador e do consumidor. Usado para definir estratégias operacionais a partir do cruzamento de informações, esse processo permite, por exemplo, mudar regras, criar bonificações e expectativas e definir preços e penalizações. Com base, por exemplo, na dinâmica do trânsito da cidade, na previsão meteorológica, no tempo que o motofretista passa conectado no aplicativo e na avaliação feita pelo consumidor. É o que Abílio chama de gerenciamento algorítmico. “Isso traz novas possibilidades para a forma de organização do trabalho.”

FONTE: Reproduzido do Jornal da Unicamp

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