quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O ódio dos conservadores ao “pensamento crítico”


Por Ricardo de João Braga*

O núcleo dos pensamentos conservador e reacionário é o seguinte: Deus fez o mundo como ele é e deve ser. Deus pode ser substituído por uma indeterminada “força cósmica superior” ou mesmo a “natureza”. E a ideia de como o mundo é e deve ser remete a um modelo idealizado em boa medida pelo agente que acolhe o princípio. Esclareça-se que a forma como o mundo é e deve ser não se refere às estações do ano, ao brilho do Sol ou ao canto dos pássaros, mas sim à hierarquia social, à disposição dos direitos e forças econômicas e também políticas. Em síntese, a uma determinada forma de desigualdade.

Platão, que contribuiu com elementos centrais ao pensamento conservador – entre as infinitas contribuições que deu ao pensamento humano – em sua obra A República afirmava que cada classe deveria se colocar em seu devido lugar, definido este pela capacidade de cada um para realizar seus papeis sociais, seja governar, proteger a sociedade militarmente ou produzir a subsistência. A ideia se expressa na metáfora que retorna infinitamente: a sociedade é um corpo em que todos os órgãos são importantes e cada um realiza sua função própria. Acrescente-se: um órgão não pode se rebelar e tentar fazer as funções de outro, e um órgão nobre recebe muito mais sangue que a sola dos pés.

O pensamento conservador é aquele que quer conservar o que é importante. Usando uma variação de Lampedusa, até aceita mudar para que tudo fique igual. Já o reacionário é alguém que se quer conservador de um determinado passado, para isso luta por fazer a sociedade retroagir a um estado de coisas por ele escolhido – e via de regra idealizado. Lembram do “eu quero fazer o Brasil voltar 50 anos no passado”?

A ordem social advogada pelos conservadores, como lógica de funcionamento, é apoiada, propagada e divulgada por aqueles positivamente privilegiados. Ao defenderem a propriedade privada, seus grandes apoiadores são os maiores proprietários. Ao defenderem a superioridade dos valores religiosos, são aqueles que buscam se posicionar positivamente nas religiões estabelecidas. Ao apoiar os papeis de gênero clássicos do patriarcado e da submissão das mulheres, são os homens no comando. Assim, a ordem “divina” ou “natural” é uma que, não coincidentemente, o favorece.

Acontece, contudo, que a ordem social não deriva de uma escolha divina ou da natureza das coisas. Classes e papeis sociais, identidades, privilégios não se encontram embaixo de pedras como musgos e vermes, não são frutos da natureza. Se Moisés nos trouxe as tábuas dos dez mandamentos, Jesus, ao contrário, amou e caminhou com a escória de seu mundo – prostitutas, cobradores de impostos, adúlteras, leprosos, miseráveis. Afirmou também que para eles viria em primeiro lugar o reino dos céus. Jesus não fez política, não disse que “Seu reino é deste mundo”, mas conferiu dignidade IGUAL a cada ser humano, independente da ordem social do momento.

O pensamento crítico é então a básica e necessária atitude de compreender que: o mundo dos seres humanos é ordenado pelos seres humanos, é objeto de nossas ações e escolhas, controlemos muito, pouco ou nada as consequências delas – não importa. E se o mundo deriva do que fazem os seres humanos, ele é nossa responsabilidade e, mais que isso, nossa POSSIBILIDADE.

Para quem crê que o mundo é imutável, ou que ao menos algumas estruturas o são ou deveriam ser, o pensamento crítico ameaça. Em termos apenas ideológicos, pensar alternativas e mudanças ameaça a quem tanto valoriza a estabilidade. Contudo, o problema é muito maior, porque a estabilidade em geral favorece os que a querem imutável e é contestada pelos desprivilegiados. Nada de surpreender, convenhamos.

Escola sem partido, ensino domiciliar (homeschooling), críticas aos professores “de esquerda”, os ataques desvairados ao Enem – também obra de “marxistas” e “esquerdistas” infiltrados – expressam no mínimo o desconforto e no extremo o ódio e a vontade de destruir o pensamento crítico.

Em uma sociedade que inerentemente se transforma, revolvida por mudanças econômicas e tecnológicas, que difunde o conhecimento, a escolaridade, que apoia o liberalismo político do todos são iguais perante a lei, o mundo social é questionado. Se essa realidade social se move, para os conservadores a crise está instaurada, o medo bate à porta, o pânico é propagado e a indignação usada como arma política (eis a extrema direita!).

Em um mundo em que tantas transformações ocorrem, podemos abrir mão de questionarmos nossa ordem social e assim procurarmos soluções melhores para todos? Não, não podemos. O pensamento crítico é necessário, essencial, nossa maior esperança de evolução! Repudiá-lo é obra de incompreensão do mundo, ou sustentação de desigualdades injustificáveis e proteção a privilégios.

*RICARDO DE JOÃO BRAGA Economista e cientista político. Graduado na Unesp, tem mestrado pela Universidade de Siegen (Alemanha) mestrado e doutorado em Ciência Política (UnB e UERJ). Coordenador do Congresso em Foco Análise e professor do curso de Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. ricardo@congressoemfoco.com.br

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