Nas últimas décadas há, entre outras, algumas maneiras comuns de se discutir o aborto decorrente de gravidez indesejada: ser contra ou a favor, polêmica, portanto, sem solução. Essa forma maniqueísta de discurso não nos conduz a lugar algum. Além disso, há que se reconhecer que sua prática ocorre em todas as sociedades humanas, quer ela seja amparada pela lei ou não. Talvez um dos mais importantes ensinamentos que obtivemos das discussões patrocinadas pela área jurídica que participou da Comissão Tripartite para a Revisão da Lei Punitiva Relativa ao Aborto, convocada pela Secretaria Especial para as Políticas para as Mulheres (agora Ministério), da Presidência da República, em 2005, foi justamente reconhecer que a criminalização do aborto no Brasil é uma lei ineficaz. Ocorreram entre 750 mil a 1,4 milhão de abortos clandestinos no país naquele ano, de acordo com o dossiê "Aborto Inseguro" realizado pela Rede Feminista de Saúde, e estes concorrem com a 3ª causa de mortalidade materna em alguns estados (é a 2ª na Bahia). Há que considerar ainda a morbidade relacionada ao aborto inseguro representada por hemorragias, infecções, lesões traumáticas genitais, intestinais, esterilidade e agravos psíquicos entre outros. Dados no Ministério da Saúde reportam 250 mil internações anuais com custo de R$ 30 milhões relacionados ao atendimento a curetagens pós-abortamentos (Datasus, 2005).
Portanto, o abortamento é um grave problema de saúde pública que deve ser enfrentado na esfera dos direitos sexuais e reprodutivos. É forçoso reconhecer que penalizar as mulheres que recorrem ao abortamento com a cadeia, como determina nosso Código Penal anacrônico, de 1940, é absurdo, além de irreal. Ninguém tem filhos por força de lei, tê-los é um projeto afetivo e de responsabilidade de homens e mulheres. Criminalizar o aborto significa penalizar as mulheres de classes sociais menos favorecidas, que são as que precisam solucionar sua gestação não desejada de maneira insegura.
As desigualdades regionais e sociais tornam-se bem evidentes quando observamos as distribuições dos riscos de mortalidade materna em consequência de complicações de aborto: na região Norte o risco de mortalidade materna em consequência de gravidez que termina em aborto é 1,6 vezes maior que na região Sudeste. Esse risco para mulheres negras, analfabetas ou semi-analfabetas é 2,5 vezes maior que para mulheres brancas. Nessas primeiras também a mortalidade materna em consequência de aborto é 5,5 vezes maior do que na categoria de mulheres com 12 ou mais anos de escolaridade.
Não resta dúvida que é um tema sem consenso; cada um de nós tem a sua forma de pensá-lo levando em consideração valores culturais, éticos e religiosos. É uma questão de direito individual e não de maioria, por isso mesmo ela não deve ser plebiscitária. Um dos desafios contemporâneos é justamente aceitarmos que questões de direito dizem respeito à esfera pública enquanto que as de fé, direitos individuais, sexuais e reprodutivos dizem respeito à esfera privada.
Em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, 184 Estados reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos e reforçaram o exercício dos direitos sexuais, reconhecidos em 1995, na IV Conferência Mundial da Mulher em Beijing. Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos além de serem reconhecidos, a partir de então, passaram a ser tratados na ótica dos direitos humanos, pressupondo o respeito à liberdade e à autodeterminação, sem coerção ou violência, e o dever dos Estados-parte (Brasil incluído) de garantirem condições concretas para o exercício desses direitos através de leis e de políticas públicas.
Recomendações foram dirigidas aos Estados-parte para que avaliem a possibilidade de reformar suas legislações punitivas contra as mulheres que fazem abortos ilegais, garantindo-lhes, além disso, em todos os casos, o acesso a serviços de qualidade para tratar as complicações derivadas de abortos.
Houve avanços nos últimos anos na discussão sobre o aborto? Como sabemos, o Código Penal permite o aborto em duas situações: gravidez com risco de morte da gestante e resultante de estupro. Nas situações de risco à vida da gestante há um entendimento claro na classe médica no sentido de não haver dúvida em proteger a mãe e dar-lhe plena assistência. Em relação aos casos de gestação decorrente de violência há muitas considerações a serem feitas. Desde o início de funcionamento do primeiro Serviço de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual, em 1988, no Hospital Artur Saboya de Medeiros (no bairro paulistano do Jabaquara) foram fundados cerca de 55 outros serviços no SUS. Eles estão nas grandes cidades, na maioria, capitais de estados. É evidente que essa rede é insuficiente para um país das dimensões do Brasil. Há, entretanto, um empenho do Ministério da Saúde em ampliar essa rede e capacitar equipes de saúde.
Fato meritório foi a modificação, em 2005, da Norma Técnica do Ministério da Saúde, relativa ao atendimento a vítimas de violência sexual, em que se autoriza os médicos da rede pública a fazer o aborto em mulheres que aleguem ter engravidado após estupro, mesmo que não haja boletim de ocorrência policial ou outro documento comprovando a violência sexual.
ESTADO LAICO A experiência recente do atendimento à criança de 9 anos, grávida de gêmeos, vitimada de violência pelo padrasto desde os 6 anos de idade, mostrou ao Brasil uma série de facetas que merecem destaque. Médicos, instituições e familiares das vítimas são submetidos a uma série de intensas pressões quando envolvidas em atendimentos mais expostos à mídia. Um dos aspectos que assinalamos, do caso citado, foi a postura da Igreja Católica excomungando a mãe da criança e os médicos, sendo relativamente condescendente com o estuprador (padrasto da vítima). Essa foi uma "experiência de laboratório" mostrando como informação e debate são fundamentais para o esclarecimento da opinião pública. Por outro lado é reconhecido que o Brasil é um país majoritariamente católico. Nesse contexto, deveria o direito curvar-se diante da religião, impondo coercitivamente, inclusive aos não crentes, as posições de determinada confissão religiosa, ainda que majoritária? O fato de o catolicismo predominar no Brasil constituiria justificativa legítima para o Estado adotar medidas legislativas que simplesmente endossassem as concepções morais católicas? A resposta só pode ser negativa. A Constituição de 1988 não se limitou a proclamar, como direito fundamental, a liberdade de religião (art 5, inciso VI). Ela foi além, consagrando no seu artigo 19, inciso I, o princípio da laicidade do Estado, que impõe aos poderes públicos uma posição de absoluta neutralidade em relação às diversas concepções religiosas.
Em 1989, na cidade de Ariquemes (RO), foi concedido o primeiro alvará judicial permitindo a interrupção de uma gravidez com feto portador de anencefalia. Em 1992, autorização semelhante foi dada pelo juiz Miguel Kfoury Neto em Londrina (PR) e ele nos estimulou a fazer solicitação semelhante em São Paulo, transitada em julgado, em 1993, pelo juiz católico Geraldo Pinheiro Franco que a deferiu. O fato de ser o juiz católico e contrário ao aborto, de acordo com o constante na sentença, tem a maior importância, pois, além de ser um ode à laicidade do Estado, assinalava que a decisão era tomada respeitando os mais legítimos interesses do casal que solicitava o direito à interrupção da gravidez. Alvará obtido significa atendimento digno, público ou privado.
Em 2004, foi impetrada, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde. Em 1º de junho de 2004 foi autorizada, em caráter liminar, pelo ministro Marco Aurélio Mello, a interrupção de gestações de fetos anencefálicos, quando era esse o desejo da mulher, sem necessidade de recurso à alvará judicial. Essa liminar foi cassada pelo plenário do STF em 20 de outubro de 2004. Em agosto e setembro de 2008 foram realizadas uma série de audiências públicas no STF, debatendo o tema anencefalia, envolvendo a SBPC, entidades médicas, sociedade civil, movimento de mulheres, parlamentares e entidades religiosas. Aguarda-se a decisão da mais elevada corte de nosso país. Mudanças na legislação do aborto são necessárias, é preciso despenalizá-lo e é fundamental uma discussão com a sociedade civil.
*Thomaz Rafael Gollop é médico, professor adjunto de ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí e coordenador do Grupo de Estudos do Abordo (GEA), que se reúne mensalmente na sede da SBPC, em São Paulo.
Fonte: Ciência e Cultura
Colaboração: Cido Araújo
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