quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Babás e empregadas domésticas: relações que perpetuam racismo e machismo



Maria José dos Anjos Alves, de 18 anos, afirma ter trabalhado durante quase dois anos em uma residência da cidade de Riachuelo, como empregada doméstica, limpando a casa, cuidando dos filhos da patroa, de 6h às 18h, de domingo a domingo, sem férias, sem feriados e recebendo apenas R$ 200 por mês. Hoje fora do emprego, ela pretende ingressar na Justiça cobrando seus direitos. E, se depender das novas regras que o país pode aprovar em relação aos empregados domésticos, esses direitos serão cada vez mais amplos. Foto de Adriano Abreu/Tribuna do Norte.
Texto de Renata Corrêa e Srta. Bia.
Desde o fim de semana roda a internet o texto: Viagem levando babás. Se não conseguir lê-lo no link original, há uma cópia aqui. É o relato de uma visão casa grande/senzala que a sociedade brasileira carrega desde os tempos da escravidão. A babá não é uma trabalhadora com todos os direitos respeitados, é, antes de tudo, uma serviçal, que numa viagem familiar deve estar inteiramente disponível e ainda agradecer por ter tido a oportunidade de viajar. Alguns trechos são bem ilustrativos:
Na minha opinião, em algumas ocasiões as babás são extremamente úteis, em outras são dispensáveis e em outras ainda são item de “terceira” necessidade. Enfim, acho que se bem ensinadas, elas podem quebrar um galho danado e nem sempre vão representar um novo integrante à família…
…na ida no avião perguntou se podia aceitar o lanche, se tinha banheiro, se ela podia escolher aonde sentar, enfim, prefiro assim do que as folgadas que vão logo pedindo refrigerante ou sei lá o que e ainda adoram falar suas experiências pessoais de viagens ao exterior.
…Em outras oportunidades em que vc quer que ela coma antes porque o restaurante é caro ou porque vão outros casais vc pode dizer problemas, tipo assim, “hj vamos a um restaurante com a comidas muito diferentes que vai demorar ou muito caro e etc, então vamos passar pra vc comer em algum lugar, vc prefere pizza ou Mc Donals”, porque, lembre-se ela está trabalhando.
…Nesta segunda viagem ela ficou encantada, me mandou mensagem quando chegamos agradecendo e eu acho bonitinho a pessoa dar valor pq barato não sai uma viagem dessas pra gente. Então , mais uma vez fica a dica: deixe tudo claro, pra não se arrepender depois…
A mulher que escreveu esse post não é a única que pensa dessa maneira, portanto, não adianta culpar e crucificar apenas essa pessoa. As relações com trabalhadores domésticos no Brasil tem estreita relação com nosso passado escravocrata. Assim como ela, há muitos homens e mulheres brasileiros que encaram os trabalhadores domésticos como pessoas que devem ter gratidão por estarem empregadas e por terem a chance de conviver com uma família de classe social alta. Isso, quando não os tratam como bens da família, sem permitir qualquer tipo de vida particular.
Trabalho doméstico e as mulheres negras
Segundo dados de 2005 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad/IBGE), existem no Brasil cerca de 6,6 milhões de pessoas no trabalho doméstico, das quais 93,4% são mulheres. Destas, 55% são negras. De todas as mulheres que trabalham no País, 17% são domésticas. O trabalho doméstico como atividade remunerada é muito desvalorizado socialmente, concentrando uma série de aspectos excludentes, como baixa remuneração, jornada de trabalho longa e ilegalidade na contratação. Influencia diretamente nas discriminações de gênero e raça, especialmente ao eleger um papel para a mulher negra na sociedade.
Infelizmente, o 13 de maio não foi capaz de sepultar o passado escravista do nosso país. As reminiscências desse período estão presentes por todos os lados. Na violência policial contra a população negra, na morosidade em relação a implementação do sistema de cotas no ensino superior, na precariedade do acesso aos serviços básicos garantidos pelo Governo. O trabalho doméstico também é parte desse processo histórico de invisibilidade e desrespeito às afro-brasileiras. Referência: Carta aberta ao Grupo Antiterrorismo de babás, por Luana Tolentino.
A desigualdade social brasileira tem bases nessas relações. E, principalmente, na ideia de que é um absurdo que empregadas domésticas, babás, porteiros, jardineiros ou serventes queiram salários mais altos e os mesmos direitos trabalhistas que advogados, engenheiros ou servidores públicos. Porque é um absurdo que as pessoas que tenham uma babá nesse país tenham que cortar gastos, como uma viagem ao exterior, para pagar hora extra, férias e outros direitos.

Procuram-se domésticas ou serviçais?
Essa semana também saiu no Estadão uma matéria que mostra o quanto é catastrófico que o salário de uma doméstica esteja na faixa de mil reais: Procuram-se domésticas. Paga-se bem.
Casada e mãe de duas crianças pequenas, uma de oito e outra de seis anos, a advogada tem uma jornada de trabalho longa: fica cerca de 12 horas fora de casa diariamente e precisa de duas empregadas domésticas, uma que dorme no emprego e outra que vai e volta, para administrar o lar. O problema é que Andrea ficou sem a empregada que vai e volta. Daí começou a peregrinação da advogada pelas agências de empregos domésticos em busca de uma nova profissional.
O problema nesse caso é apenas a falta de empregada? Por que essa mulher casada não tem ninguém para dividir tarefas? Por que mulheres e homens trabalham 12 horas por dia e achamos normal? Por que é preciso que uma das empregadas durma no emprego? Ela não tem casa? Não tem sua própria família? Você, que está lendo esse texto, dorme no emprego? Como fazem as pessoas que trabalham 12  horas por dia, como muitas trabalhadoras domésticas, mas não tem dinheiro para contratar uma empregada doméstica?
O que as pessoas irão fazer, quando não houverem mais empregadas domésticas ou babás para contratar? Vão importar babás paraguaias ou bolivianas? Por que não questionamos os horários de trabalho de todas as pessoas, para podermos ter tempo para cuidar das crianças? Por que não lutamos por escolas em período integral e creches públicas? Por que não propor lavanderias populares? Espaços de lazer? Por que não pensar em elementos que poderiam nos ajudar na criação das crianças e nas tarefas domésticas, que demandam sim muito tempo, mas são coisas com as quais temos que lidar?
Em dezembro de 2012, foi aprovada pela Câmara dos Deputados, a PEC que amplia direitos das empregadas domésticas. Ao invés de comemorarmos essa decisão como mais um avanço nos direitos trabalhistas, a maioria das matérias reclama do peso que isso terá nas contas do empregador. Essas pessoas provavelmente querem voltar ao tempo em que o salário mínimo não aumentava anualmente. Porém, qual o impacto que a falta de direitos trabalhistas teve na vida de milhares de pessoas durante anos? Deve haver até mesmo um impacto na economia dessa parcela da população, mas não interessa pesquisar isso, não é mesmo?
Como não é possível contar com o bom senso para regular relações de trabalho, principalmente dos trabalhadores domésticos, que não raro são submetidos a todo tipo de opressão travestida de “afeto” e de que eles “são da família”, as leis devem ser cumpridas.
Trabalhadores que viajam a serviço recebem hora extra, diária para alimentação, transporte e não estão à serviço 24 horas por dia. Por que um trabalhador doméstico não estaria submetido as mesmas regras?
Maternidade e Gênero
Outra questão que chama a atenção é a agressividade mal dirigida para autora do post, citado no início desse texto. Sim, o relato dela é um retrato didático da desigualdade e do sistema de castas e privilégios que assola o Brasil e as relações de trabalho, mas muitos comentários foram a respeito das escolhas pessoais dela a respeito da maternidade. Criticam o fato dela “ler uma revista” enquanto a babá faz castelinhos de areia. Ser mãe não te obriga compulsoriamente a gostar de determinadas atividades. Alguém questionou por que o marido não faz castelinhos ou senta a bunda na areia para brincar com a criança? Ou o quanto ele se dedica a dar atenção aos filhos? Não questionamos, porque está subentendido que isso é papel apenas da mãe.
A questão básica é que quando falamos do trabalho doméstico é como se não falássemos de trabalho ou de pessoas, falamos de objetos. Eu não questiono o fato de não dar para ser super-mãe, ora, as babás de nossos filhos sabem disso na carne, pois muitas vezes deixam os filhos delas com a vizinha, mãe, avó para poderem cuidar dos nossos e alguém parou pra pensar nisso ao fazer propostas que no final das contas reverberam o racismo incrustrado no Brasil? Referência: Quando foi que as babás viraram coisas? Durante a escravidão, por Luka Franca.
No fundo, a polêmica mostra como ainda estamos presos a uma visão de que o trabalho doméstico é um trabalho “menor”, seja ele exercido pela mãe ou por uma empregada contratada. Questiona-se não só o valor pago para babás e diaristas, um trabalho menosprezado, não intelectual e majoritariamente feminino, como também questiona-se a maneira que cada mulher exerce a sua maternidade. Como se “cuidar das crianças” fosse apenas sua responsabilidade e o companheiro não tivesse nenhuma participação nessa relação. Perdem patroas e empregadas. Perdem as mulheres como um todo, quando não entendemos que o exercício das funções internas e domésticas são responsabilidade de todos os membros da família, independente do gênero.
Desigualdade perpetuada
Para que a desigualdade social seja constantemente perpetuada é preciso que ricos e pobres saibam quais são seus lugares e seus espaços de poder. Da mesma maneira, mulheres e homens tem papéis sociais pré-estabelecidos. Qualquer pessoa que fuja ou não se encaixe nesse jogo pré-estabelecido é rejeitada socialmente. Quando não questionamos esse sistema perverso que traça linhas invisíveis em nossas relações sociais, perpetuamos o machismo e o racismo na sociedade, dentre outros preconceitos.
Dessa maneira, arquitetos e engenheiros continuam projetando apartamentos com dependência de empregada, já estamos exportando essa ideia para Miami. O cabelo afro não é visto como sinônimo de elegância e beleza. As mulheres são as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças e pelas tarefas domésticas. Mulheres negras são preteridas em cargos que exigem boa aparência. O período escravocrata foi há muito tempo e nossa realidade não tem nenhuma ligação com nossa história. Afinal, a carne mais barata do mercado sempre foi a carne negra.
O fato de o mercado estar hoje mais favorável ao trabalhador fomenta comportamento inusitado. Andrea conta que, no primeiro mês de trabalho, a nova empregada já pleiteou o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A contribuição ao FGTS para empregado doméstico ainda não é obrigatória, mas em breve deve virar lei. “Isso é reflexo de uma economia aquecida. Hoje as empregadas domésticas estão por cima da carne seca”, diz Andrea. Referência: Procuram-se domésticas. Paga-se bem.

Srta. Bia

Uma feminista lambateira tropical.

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