Por Rodrigo Viana
Tinha eu 20 e poucos anos quando a União Soviética e os regimes do Leste
europeu ruíram. Olhando pra trás, a tendência de todos nós é relembrar daqueles
episódios em bloco. Mas quem viveu aquilo de perto sabe bem que houve idas e
vindas.
Quando Gorbachev propôs a Perestroika, em meados dos anos 80, muita gente se
entusiasmou. Não se via aquilo como “o último suspiro da União Soviética”. Mas
como a “renovação” do socialismo, que manteria o gigante na disputa pela
hegemonia mundial. Lembro que meu irmão chegou a criar um time de futebol
batizado de Perestroika. De outro lado, havia resistências. Um amigo,
stalinista empedernido, comemorou quando a linha dura soviética tentou dar um
golpe e chegou a prender Gorbachev durante algumas horas.
No fim das contas, nem “renovação do socialismo”, nem a volta aos tempos de
Brejnev. Gorbachev debelou o golpe, ficou no poder mais alguns anos, mas a União Soviética desapareceria logo depois. Na mesma leva,
vimos a queda do Muro de Berlim e a reunificação
alemã, a “Revolução de Veludo” na
República Tcheca, a vitória de Walesa contra os
comunistas na Polônia. Sem falar na imagem que – na época – me marcou muito mais do que a dos
pedaços de muro sendo arrancados em Berlim: o fuzilamento
do casal Ceausescu na Romênia. No chão, jaziam os corpos, jazia a
velha guarda do stalinismo. Jazia a história do século XX.
Relembrando de tudo agora, os mais novos talvez imaginem que tudo ocorreu ao
mesmo tempo. Não foi bem assim. Entre a chegada de Gorbachev ao poder (1985) e
o fuzilamento de Ceausescu, no fim de 89, transcorreram-se 4 longos
anos. Mas a queda final da União Soviética só viria em 1991, com o adeus
definitivo a Gorbachev. No meio do caminho, Lula perdeu para Collor em 89, o
Brasil de Lazaroni foi humilhado pela Argentina de Maradona em 90, e o coringão
ganhou o primeiro campeonato brasileiro com o gol de Tupãzinho.
O mundo mudou, a Guerra Fria acabou. Mas, na época, muitas vezes perdíamos a capacidade
de compreender a onda histórica que se desenhava. Foram necessários quatro ou
cinco anos de distanciamento, para entender a exata dimensão do furacão
que passara pela Rússia e o leste da Europa.
Penso nisso tudo ao olhar para a nossa América Latina hoje.
Na semana que passou, Cuba assumiu a coordenação da CELAC (Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos), durante reunião
do bloco ocorrida no Chile. O fato mereceu pouco destaque na nossa velha
imprensa – talvez deprimida por ter sido, ela mesmo, a velha mídia,
derrotada por esse processo que assistimos na América Latina.
A CELAC é uma espécie
de OEA, mas sem Estados Unidos e Canadá. E com a presença de Cuba. É o atestado de que a hegemonia da potência
do norte está ruindo.
A permanência de Chávez deu força para Morales
ganhar na Bolívia, enquanto no Brasil Lula vencia eleições (2002
e 2006) e debelava a crise de 2005. O novo
bloco à esquerda ajudou Kirchner a enfrentar os credores e reerguer a
Argentina pós-Corralito. E serviu de modelo para Correa no Equador. Ainda
vieram Tabaré e Mujica no Uruguai, Lugo no Paraguai, Humala no Peru…
Idas e vindas… Lugo
caiu, a direita ganhou no Chile. Mas a virada histórica parece inquestionável.
E se Lula tivesse aceitado as pressões da direita
brasileira durante a crise da Petrobrás com a Bolívia? A integração
sul-americana talvez não tivesse andado. Mas Lula negociou, Morales e a Bolívia
ficaram mais fortes, e a América do Sul manteve-se unida.
A História se
constrói na tessitura de fatos miúdos e de fatos maiúsculos… Um exemplo? E se Aldo Rebelo tivesse perdido a eleição para presidência da
Câmara em 2005 (ganhou por vinte votos do tucano Thomaz Nonô), no momento em que o governo Lula parecia destroçado pela crise
do Mensalão? Se a oposição comandasse o Parlamento, talvez ali tivesse a chance
de avançar num processo de impeachment, ou de desgaste definitivo de Lula. A vitória de Aldo hoje é um fato miúdo. Mas ali se travou uma
batalha definitiva para a consolidação do projeto lulista.
Daqui a 20 ou 30 anos, talvez não lembremos de
todos esses detalhes. Mas, ao olhar em
bloco para a América Latina, na entrada do século XXI, teremos que reparar em
dois feitos impressionantes (consequência das pequenas batalhas
ganhas no dia-a-dia):
- a derrota da Alca
em Mar del Plata, em 2005, com o posterior fortalecimento da UNASUL(que reúne todas as
nações da América do Sul;
- a construção da
CELAC.
Não é pouca coisa o que acontece no
Continente. O que falta, talvez, seja
capacidade teórica para entender o que se passa. Valter Pomar,
dirigente petista que é também o secretário executivo do Foro de São Paulo
(entidade que reúne os partidos de esquerda na América Latina),
escreveu sobre isso nos últimos dias. O artigo dele, que você pode ler aqui, traz uma reflexão interessante: “No imaginário
de grande parte da esquerda latinoamericana Che ainda suplanta Allende, apesar
de que estamos todos envolvidos hoje numa experiência que tem mais a aprender
com Allende do que com Che.”
A esquerda vai
desenhando uma nova história na América Latina. Aos trancos e barrancos, sem
muita formulação teórica. Só em duas ou três décadas, entenderemos a dimensão
dessa virada histórica. Até para saber se ela de fato se
consolidou. E aí veremos tudo em “bloco”, perdendo talvez a capacidade de
entender que essa história se constrói também na miudeza, nos pequenos combates
que, se perdidos, podem significar recuos definitivos.
Fonte: Blog Escrevinhador
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