Sei que a inveja não é uma coisa boa, mas quando li
que, por 17 votos a favor e 14 contra, o Senado uruguaio aprovou na
quarta-feira projeto de lei que descriminaliza o aborto no país, confesso que
senti um certo mal-estar por ver que esse pequenino vizinho do Brasil é capaz
de estar anos-luz à nossa frente em certas questões, como nesse caso - ou na
discussão que o Parlamento uruguaio faz em relação à estatização da produção e
do comércio da maconha.
Os méritos para esses avanços sociais vão, em grande parte, para o
presidente José Pepe Mujica, o ex-guerrilheiro Tupamaro que está trazendo o
Uruguai para a modernidade.
Mujica é um caso raro entre os governantes latino-americanos, talvez de
todo o mundo. O seu ar bonachão, de alguém completamente desprendido dos ritos
do cargo, esconde um caráter tenaz de quem pretende fazer uma transformação
profunda em seu país.
Mujica ficou famoso quando a imprensa mundial destacou que ele recebe
US$ 12.500 mensais por seu trabalho como presidente, mas que doa 90% de seu salário
para ONGs e pessoas carentes. Seu carro é um Fusca e ele mora num sítio nos
arredores de Montevidéu e para ele o restante que sobra do seu salário é o
suficiente para se manter. “Esse dinheiro me basta, e tem que bastar porque há
outros uruguaios que vivem com bem menos”, diz.
Mas voltando à inveja...
Não posso deixar de lamentar que no Brasil, uma superpotência econômica,
territorial e demográfica se comparado ao Uruguai, a campanha eleitoral para a
capital do Estado mais rico da federação, e ela mesmo uma das metrópoles mais
importantes do mundo, esteja centrada em um tema medieval como a
homossexualidade, com um dos candidatos se comportando como um fanático de
extrema-direita, desses que a gente só acreditava existir nas piores obras de
ficção.
Enquanto isso, o Uruguai se transforma no segundo país da América do Sul
(depois da Guiana) a permitir o aborto por qualquer mulher que deseje fazê-lo,
até a décima segunda semana de gestação.
Antes de entrar em vigor, a lei precisa passar por sanção do presidente
Pepe Mujica, mas ele já avisou, em reiteradas declarações, que não vetará a
decisão tomada pelo Parlamento.
De acordo com estimativas de organizações sociais são feitos cerca de 30
mil abortos por ano no Uruguai. Segundo o Ministério da Saúde, no ano passado,
46.706 crianças nasceram no país.
O projeto não legaliza o aborto, mas sim impede que a interrupção da
gravidez por parte de cidadãs uruguaias seja tratada como crime. A decisão
final pode ser tomada pela gestante depois de ter sido observado um processo
obrigatório de consulta a três profissionais vinculados ao sistema de saúde
local e desde que o aborto seja praticado por centros de saúde registrados.
Entre 1934 e 1938, o aborto foi legal no Uruguai. E, desde a reabertura
democrática (1985), todas as legislaturas apresentaram projetos a respeito.
O projeto aprovado é resultado de um extenso vaivém do texto na Câmara e
no Senado uruguaios. Em 2008, o então presidente Tabaré Vázquez vetou os artigos da Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva que
estabeleciam a descriminalização do aborto.
Agora, com Pepe Mujica, as coisas vão mudar.
Fonte: Blog Crônicas do Motta
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