A obra legada pelo filósofo da democracia direta, J. J. Rousseau (1712-1778), O contrato social, comemora 250 anos. O último capítulo interessa, hoje, graças à incorporação da religião como elemento central da política pelo Tea Party, a ala conservadora de extrema-direita do Partido Republicano nos Estados Unidos, e agora pelo PSDB no Brasil. Não à toa, o movimento inaugural da candidatura de José Serra no segundo turno das eleições foi reunir-se com o pastor radialista Silas Malafaia e o pastor Jabes Alencar, membro do Conselho de Pastores de São Paulo (Saul Leblon, “Malafaia: o procônsul de Serra para ‘os bons costumes’”, Carta Maior, 11/out).
Sem um programa que interpele a população, o tucano quer promover o apagão das consciências com o auxílio de batedores medievais, acusando (sic) o petista Fernando Haddad de “apoiar ativistas gays” e propor um “kit gay” às escolas no Ministério da Educação. Se as desregulamentações neoliberais sinalizaram o surgimento de uma sociedade pós-contratual, o recurso a um código moralista nos processos políticos para demarcar território aprofunda o retrocesso civilizacional inspirado no Consenso de Washington. “A ação política é revestida de valores… que é uma coisa que ameaçou sair de moda, e felizmente com o STF voltou à moda”, discursou Serra ao conhecer o resultado das urnas em São Paulo. Do fetichismo da globalização, dos ajustes fiscais e das privatizações ao fetichismo da família, da propriedade e da tradição.
Ao apagar a fronteira entre a vida privada e a vida pública, bem como introduzir dogmas na jurisdição da política, a direita brasileira busca afastar do debate eleitoral os avanços obtidos pelo governo Lula / Dilma. O objetivo é retirar de cena o modelo atual de desenvolvimento com justiça social, liderado pelo PT. Pouco importa que o preço seja a substituição do sistema político por um sistema teológico para o qual a tolerância é uma fraqueza, e não um princípio de convivialidade em favor dos direitos humanos. A opção joga no lixo o Estado moderno (laico, por definição) e os alicerces da nação (respeito às diferenças) em um país continental, cuja força e encanto decorrem de sua diversidade cultural. Na defesa do projeto de classe a que serve a social-democracia serrista, o rentismo, setor mais beneficiado com os índices elevados da taxa Selic que aumentam a dívida pública e diminuem os recursos para investimentos sociais, – vale tudo. Não há limites às táticas para assegurar os interesses do capital financeiro.
O PSDB estimula um despotismo comportamental que transfere a autonomia dos indivíduos de decidir sobre o seu corpo para uma esfera de heteronomia, em nome de um padrão dominante. Ademais, insinua a prevalência da autoridade clerical sobre a autoridade civil, como se a pluralidade da vontade geral coubesse em uma única linha de pensamento. A religião que tutela o homem não deve se confundir com a Constituição que rege a vida do cidadão. A primeira remete a um culto interior de Deus e aos preceitos contidos no imperativo categórico kantiano de tratar as pessoas sempre como um fim em si mesmo e não como um meio. A segunda estabelece a igualdade frente ao Estado, independente de gênero, etnia, ideologia ou orientação sexual. A liberdade e a tolerância religiosa são conquistas da democracia caras aos fundadores do liberalismo clássico, a exemplo de John Locke (1632-1704). Para a reação neoliberal, porém, aqueles valores submetem-se antes à acumulação capitalista e à luta pelo poder.
Quando a religião (a cruz) sobrepõe-se ao aparelho estatal (a águia, metáfora herdada dos romanos), ela torna-se tirânica e má por dilacerar a sociabilidade e incentivar a execração pública dos acusados de desvio de conduta. “Tudo quanto rompe a unidade social nada vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo não servem para coisa alguma”. Em resumo: “Quem quer que ouse dizer: ‘Fora da igreja não há salvação’, deve ser banido do Estado, a menos que o Estado não seja a Igreja e o príncipe não seja o pontífice”, ensinou Rousseau. A laicidade do Estado é o que garante a equanimidade entre todos e pavimenta a civilização.
Sobre a subjetividade que move o tucanato, vale lembrar a atitude que separa a hipocrisia do cinismo. O hipócrita age com dissimulação. O cínico engana sem disfarçar as manipulações em proveito próprio. Serra e os arrivistas da mídia que fazem o trabalho sujo para a Casa Grande pertencem ao último grupo. Não se preocupam em ocultar, atrás do falso moralismo, o ódio à Senzala e seus representantes no espectro partidário. Ecoam os setores resistentes às mudanças que compartilharam os aeroportos, então exclusivos, e valorizaram o salário das funcionárias domésticas em uma conjuntura de pleno emprego, para citar itens do cotidiano. Cabe às organizações populares combinarem a denúncia da desfaçatez ultradireitista com iniciativas que reafirmem a luta pela modernização dos costumes, sob a guarda do Estado Democrático de Direito. Vade retro!
Reproduzido da Revista Sul21
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