segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Lobo da misoginia: O que sobra pras mulheres????


A primeira esposa aplaude o mestre do universo

Como eu disse, adorei O Lobo de Wall Street, que pra mim é o filme do ano. E é um filme incrível pra discutir gênero. 
Mas, antes de entrar nesse tema, e como não sei onde mais posso escrever sobre isso, só queria lembrar de uma das grandes responsáveis pelo mérito de Lobo ser tão frenético. É de espantar que a consagrada editora Thelma Schoonmaker, colaboradora de Martin Scorsese nos últimos quarenta anos (desde Touro Indomável; quando perguntaram pra ela como uma senhora tão gentil podia editar os violentos filmes de gangster de Scorsese, ela respondeu: "Ah, mas eles não são violentos até que eu os edito"), não tenha entrado nas indicações do Oscar de melhor montagem.
Tudo bem, Thelma já foi indicada sete vezes e já ganhou três, mas a edição de Lobo é impecável. Li algumas pessoas reclamando de cortes abruptos e pouco convencionais, como se houvesse problemas de continuidade, mas é tudo de propósito: quando os personagens estão sob o efeito de drogas, os cortes são estranhos (não que eu tenha notado). Como o pessoal tá toda hora drogado...
Mas não é todo mundo que se droga a toda hora -– são os homens do filme. A lição que Jordan (Leonardo DiCaprio) recebe de seu mentor é que precisa fazer duas coisas para sobreviver em Wall Street: masturbar-se várias vezes por dia e usar drogas. Quando o jovem Jordan ouve essa lição, ele já é casado, com uma cabeleireira. 
Sua (primeira) esposa lhe dá lições valiosíssimas: o demove de desistir da carreira de corretor da bolsa e aponta o emprego num escri de subúrbio, o acalma depois que uma revista o chama de Robin Hood que rouba dos ricos para dar dinheiro a si mesmo ("não existe publicidade ruim"), e o motiva a levar uma empresa para um nível mais alto -- afinal, por que roubar apenas dos pé-rapados? Vamos roubar dos ricos também (com outras palavras, porque ela nem parece saber que o marido está roubando). 
Eu não achei Lobo misógino. Porém, Lobo certamente reflete um ambiente misógino, que continua até hoje. Afinal, festas com strippers e prostitutas são comuns no mundo corporativo. Levar os executivos para strip clubs é a coisa mais banal que existe. Mas o que acontece se você tem um bom cargo numa empresa e não é UM executivo, e sim UMA executiva? É raro (só 3% das 450 maiores empresas no Brasil, por exemplo, são dirigidas por mulheres), mas pode acontecer.
E aí, você é uma executiva num mundo masculino. Seus contatos, colegas e clientes são homens. Como você vai desenvolver uma certa proximidade com eles, proximidade esta que pode ser essencial para fechar negócios? Sair sozinha com seu chefe ou seu cliente, nem pensar -- todo mundo achará que você está transando com eles (muita gente já acha que você só chegou onde chegou através do sexo, como se ser mulher fosse uma vantagem no mundo corporativo!). Como você vai jogar golfe com seus clientes? Como você vai fechar negócios se não está interessada numa lap dance? O fato do mundo de negócios ser masculino, regado a testosterona, fica muito evidente quando se vê Lobo. Isso se chama sexismo institucionalizado.
Pra alguns que sonham em ter o estilo de vida de Jordan e seus amigos, Lobo quase serve como guia. Pense comigo: se o sonho do jovem rapaz no capitalismo é ser rico pra gastar tudo com prostitutas e brinquedos, como jatinhos, iates e carrões, o que resta pras mulheres sonharem? Ser stripper? Ser a esposa-troféu de um desses mestres do universo?
O que você pode fazer, como mulher, se o mundo mede sucesso pela quantidade de brinquedos que um homem tem no seu playground? Se você não tem interesse em superar o próximo, baseado numa eterna competição pra ver quem tem o maior pênis ou quem mija mais longe? Se você não quer marcar território com urina?
Esse é um dos motivos pelos quais é complicado ser uma feminista de direita. Porque só fazer que mulheres cheguem a presidentes de empresas não resolve. Devemos querer é derrubar o sistema. Querer um sistema em que "sucesso" seja avaliado por feitos e valores que não incluam quem você derrotou hoje. Porque cheirar cocaína em cima da bunda de uma prostituta de repente pode até significar sucesso pro executivo que tá cheirando, mas olha o "sucesso" máximo que essa mesma prostituta pode atingir.
Não por acaso, a vasta maioria das mulheres que vemos no escritório da Stratton Oakmont (criada por Jordan como base para extorquir dinheiro) são prostitutas. Há uma secretária, que aceita ter seu cabelo raspado na frente dos colegas em troca de US$ 10 mil (e chora, o que me lembrou aquela panicat no Pânico); há outra, mais forte e segura, que diz a seu chefe “Vá f*der sua prima” (e ele realmente é casado com a prima). E há uma corretora, uma só, que Jordan destaca num de seus discursos. Assim que ela chegou à empresa, pediu a ele um adiantamento de US$ 5 mil dólares. E Jordan, tão altruísta, lhe deu um cheque de 25 mil. 
Mas o interessante é que sabemos pouco da vida dos outros corretores. Temos Jordan e o parceiro como base, e os vemos torrar tudo em drogas, prostitutas, e carros. Não sabemos nada da corretora (ela praticamente só aparece nessa cena do discurso), apenas que ela é mãe solteira e que pediu aqueles 5 mil adiantados não para dar a entrada num novo carro, e sim para pagar a educação de seu filho. Essa é uma das dicas, a meu ver, que Lobo não é misógino, embora lide com protagonistas misóginos.
Tem uma cena de estupro em Lobo, se bem que ela é um pouco ambígua. Um texto do Jezebel pergunta por que ninguém está falando dessa cena. Na realidade, tem muita gente falando. Quem for ao fórum de discussão do IMDB verá vários tópicos sobre a cena (e a maioria concorda que sim, é estupro). O motivo, um tanto óbvio, para que nenhum crítico esteja falando da cena é que ela acontece nos quinze minutos finais de Lobo
E, sabe, comentar algo no fim de um filme é visto como super spoiler. Isso me deixa numa posição difícil, como crítica feminista. Porque, se eu não falar da cena, vão inventar mil e uma teorias da conspiração sobre porque estou ignorando a cena. E, se eu falar (mesmo que eu fale dela dez anos depois da estreia do filme), vão me acusar de spoilers. Então eu vou falar, mas aviso logo: tá cheio de spoilers.
Quando esta cena acontece (não tenho fotos dela), Jordan está em apuros. Ele precisará entregar seus amigos/comparsas para conseguir uma pena menor. 
É isso que ele está falando pra sua esposa, que responde com monossílabos. Qualquer pessoa que já esteve num relacionamento percebe que sua segundo esposa, Naomi (Margot Robbie), está de saco cheio e que o casamento está no fim, mas não Jordan. 
Ele se aproxima dela e pede pra transar. Ela responde que não está a fim. Ele insiste, ela nega. Ele a coloca na cama e tenta fazer sexo, não com ela, mas nela. Ela diz “não” e “pare”. E aí ela diz, com muito ódio, “Eu te odeio”. Ele insiste para transar e diz que a ama. Ela responde: “Eu quero que você goze pela última vez”, e se mexe embaixo dele (isso não representa exatamente consentimento. Querer que uma violência acabe rápido não é consentir). Ele ejacula, ela anuncia que aquela foi a última vez que eles fizeram sexo, e que quer o divórcio. 
Em seguida vem uma sequência ainda pior. Ela diz que ficará com as crianças, eles discutem, ela lhe dá um tapa no rosto. Ele responde com um soco. Ele rasga um sofá para encontrar um pacote de cocaína que havia escondido, e se droga. Naomi aparece, discutindo, e Jordan lhe dá um soco (segundo relatos de gente que viu Lobo no cinema, é neste momento que o público fica visivelmente indignado). 
Jordan pega a filhinha no quarto e a leva pro carro. Naomi, desesperada, tenta impedi-lo. Ele põe a menina no banco dianteiro, põe o cinto de segurança nela, e bate o carro violentamente na saída da garagem. Por um milagre, nada ocorre com a menina. Naomi a resgata e a leva pra dentro da casa. Se não me engano, esta é a última vez que vemos Naomi no filme.
Toda essa sequência –- o estupro, a violência doméstica, arriscar a vida da filha –- é um ponto de não retorno de Lobo. É quando a plateia de maneira geral deixa de ver Jordan como “um idiota que ganhava dinheiro ilegalmente” para “esse crápula não presta mesmo”. Mas é só bem no fim mesmo. É importante observar que, num filme que muita gente considera misógino, é o tratamento que Jordan dá a sua esposa que fará com que a gente o deteste.
A maior parte de nós, claro. As reações sempre vão variar, e algumas são imprevisíveis. Pense no grande Nascido para Matar, filme do Kubrick sobre a Guerra do Vietnã. Até podemos discutir se Apocalipse é ambíguo na sua condenação à guerra, mas não resta dúvida sobre Nascido para Matar. O treinamento dos fuzileiros navais na primeira metade do filme é brutal e desumanizador. 
E não é que o filme virou o favorito dos fuzileiros navais da vida real? Eles vibram com todas as humilhações que o sargento impõe ao recruta gordo. E urram quando o recruta, ensandecido, mata o sargento e se mata em seguida. Pra esses fuzileiros, o filme não é uma crítica. É uma celebração.
Ou pense em O Poderoso Chefão, que não só mostra um universo 100% patriarcal, como também o recomenda (é uma escolha encerrar o filme -– que eu amo, só pra deixar claro –- literalmente fechando a porta na cara da Diane Keaton). Tá cheio de rapazes que veem o Chefão como um modelo de vida, um ABC sobre a honra. Cara, deixa eu te contar um segredo: é sobre a máfia. Não tem nada de digno na máfia. 
Só pra terminar.
O verdadeiro Jordan de Lobo hoje ganha 30 mil dólares por hora de palestra. Depois de passar alguns meses na prisão, onde escreveu suas memórias, vendeu seu livro por um milhão de dólares, e ganhou outro milhão pelos direitos de adaptação para as telas. Diz ele: “Vá ao cinema e veja DiCaprio me representar como eu era e lembre-se do homem que me tornei”.
Até agora, ele pagou apenas US$ 11.6 mi dos 110 mi que precisa devolver. 
Seu parceiro, Danny Pourish (interpretado por Jonah Hill), atualmente vive numa casa de 7,5 mi com sua nova esposa. Sério, alguma dúvida que o crime compensa? Compare a vida de Danny com a de sua ex, Nancy.
As 85 pessoas mais ricas no mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população mundial, ou seja, que 3,5 bilhões de pessoas. A vasta maioria dessas 85 pessoas mais ricas do mundo são homens (a lista da Forbes dos bilionários de 2013 inclui 1,426 pessoas. Dessas, apenas 138 são mulheres). 
E 70% das pessoas mais pobres do mundo são mulheres. Portanto, faça os cálculos. Se tirar proveito do capitalismo já é uma tarefa hercúlea, ser mulher no capitalismo parece uma missão ainda mais fadada ao fracasso.
O Lobo de Wall Street é uma prova muito bem ilustrada que vivemos num sistema que só nos desfavorece. 
 

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