domingo, 19 de fevereiro de 2012

Moçambicanos resistem à exploração da Vale e param trem


É domingo, e Joaquim Mandenga aproveita a folga para viajar e visitar sua família depois de trabalhar 14 horas por dia, de segunda a sexta-feira, na Oderbrecht/Camargo Correa.
A chapa (denominação moçambicana para as pequenas vans que complementam o serviço de transporte público) leva no parabrisas adesivos com conselhos da mineradora Vale para um bom motorista, porém a lotação duplica sua capacidade máxima. No tumulto se distingue o uniforme marrom com o logotipo das empresas "dos brasileiros" onde trabalha Joaquim. Ele é um dos beneficiados com o "Projeto Carvão Moatize", impulsionado pela mineradora Vale em convênio com a construtora Oderbrecht e a Camargo Correa.
O "Projeto Carvão Moatize" foi posto em marcha em agosto de 2011, com a extração, transporte e exportação de carvão mineral, a partir da cidade de Moatize, estado de Tete, região norte de Moçambique – África. Sob controle e responsabilidade da Vale, o projeto foi liberado pelo governo moçambicano sem maiores ressalvas e em dezembro de 2011 já havia totalizado a extração de mais de 600 mil toneladas de carvão e a exportação de aproximadamente 150 mil, transportados por 3 trens diários ao Porto da Beira, através do Corredor Ferroviario Sena.
Linha de trem
Como complemento as atividades de extração, a Vale, com apoio dos governos nacional e local, tornou-se concessionária da linha de trem que liga Moatize ao Porto da Beira, através da empresa Caminhos de Ferro da África Oriental e Central (Cear), cujas ações da Vale representam 51%; e da linha de trem que liga Cuamba ao Porto de Nacala, através da empresa CDN – Corredor de Desenvolvimento do Norte, cujo capital da brasileira é de 67%.
Além disso, utilizando-se da mesma concessão, a mineradora brasileira tem o comando sobre o próprio Porto da Beira, um porto de baixa profundidade no cais, insuficiente para a carga a ser exportada, mas que serviu de experiência para uma operação inédita da Vale de transbordo de carvão em alto mar para navios de grande porte, uma atividade arriscada, que a empresa afirmou em comunicado público haver sido realizada de forma "segura e ambientalmente correta".
Com o fim de suplantar as dificuldades encontradas no raso Porto da Beira, a Vale contratou mais de 400 trabalhadores especializados para dedicar-se agora a reestruturação do também concessionado Porto de Nacala, o maior porto de águas profundas da África Oriental, para substituir a capacidade de 35 mil toneladas de carga atuais do Porto da Beira, para as 260 mil toneladas possíveis do Porto de Nacala.
Essa nova concessão facilitará o processo de exportação do carvão moçambicano da mineradora brasileira para portos como o de New Mangalore, na Índia. Dessa forma o Brasil se posiciona entre os exploradores de uma África que, já em 1498 recebia o portugues Vasco da Gama, realizando o mesmo recorrido entre portos africanos e asiáticos.
Exploração do carvão
Chegar a Moatize é chegar a uma cidade que a primeira vista parece autônoma do resto de Moçambique. É constante o trânsito de camionetes de empresas terceirizadas com sirene no teto e altas antenas; além de uma grande quantidade de ônibus que trazem a todo tempo trabalhadores dos povoados próximos à Moatize.
Os uniformes azuis e marrons dos empregados pintam uma cidade que desde 2009 mudou muito segundo Lucas Safali, um vendedor ambulante que também nos alerta sobre o futuro do projeto: "No ano passado havia 9000 pessoas admitidas pela Vale e escutamos que em 2012 a Oderbrecht vai admitir mais 8.000 na construção civil. A força de trabalho é alta e temporária, quando terminar o carvão eles (a Vale) vão embora. É menos custo, mais vantagem!", reflete.
Depois da chegada da Vale em 2005, uma série de estudos sobre o terreno de Moatize identificaram uma pequena pedra no caminho. A zona de interesse da mineradora estava habitada por no mínimo 750 famílias. Mas isso não foi um problema já que mais uma vez o governo moçambicano outorgou facilidades à empresa e em 2009 o governo regional reassentou a população no bairro do Cateme, a 40 quilômetros de Moatize.
Promessas
Na entrada do reassentamento o motorista anuncia: "O caminho inundado estava ainda pior. A Vale tinha prometido asfalto, mas só deu uma ajeitada no dia anterior à visita do governador."
A notícia antecipa o mal-estar de um povo que teve que deixar suas terras em troca das promessas do Projeto Carvão Moatize. "A Vale nos prometeu uma vida nova, sair do pior para o normal; mas construíram casas que em 2 anos já têm as paredes rachadas e são baixas demais, se inundam!", reclama José Lafaiete, morador do Cateme.
Além disso, Lafaiete conta nos dedos: "A minera prometeu bomba de gasolina, ambulância, tanque de luz, campo de futebol coberto, cemitério, ônibus público, comida por 5 anos e 2 hectares de cultivo". Porém, segundo os moradores, só receberam um hectare, iluminação mas não energia e água com problemas frequentes.
Como a maioria dos reassentados, Lafaiete põe ênfase na perda da sua machamba (terra para cultivo). Ele assegura que a nova terra tem pedras e até agora não pode obter comida dela, nem da Vale que tinha prometido alimentos por 5 anos, mas só os entregou uma vez.
Ao entrar mais no seio da comunidade aparecem as casas rodeadas de água e tijolos para improvisar uma ponte. Se tem chuva, Manuel Menezes Sirica e a sua família ficam encerrados numa lagoinha que rodeia sua casa e a humidade se infiltra pelas rachaduras das paredes.
Mas ele compreende melhor que ninguém porque é a sua casa a que tem defeitos: "Eu trabalhei na Oderbrecht por 2 anos e 6 meses e me mandaram para casa descansar. Era armador, construímos as casas dos brancos com acessos e vigas. Diferente daqui, as casas do povo foram feitas pela CETA – Construções e Serviços - (terceirizada pela Oderbrecht), aqui fizeram baratas, sem vigas, não fizeram direito."
Sirica tem esperanças de ser chamado novamente para o projeto "Moatize 2", por enquanto lamenta: "Se pelo menos estivesse trabalhando era outra coisa. Mas estamos em nossas casas sem poder fazer nada, estão mal feitas e nem podemos plantar nessa terra."
Bloqueio
No dia 20 de dezembro de 2011 a população decidiu colocar um ponto final nas mentiras da Vale. Apresentaram um documento reivindicando as promessas e definiram o dia 10 de janeiro como prazo para a resposta da mineradora, caso contrario se bloquearia a via; e isso foi o que aconteceu. Os moradores colocaram barricadas e impediram o transporte do carvão de Moatize a Beira. "O bloqueio não foi para o trem, foi para o carvão que é nosso!", assegura José Lafaite e depois explica: "Mas a empresa não responde. Passa a bola para o governo de Tete e o governo passa para a empresa. Quem prometeu foi a empresa!"
Para ele em primeiro lugar a Vale deveria resolver os problemas da população para depois fazer seus negócios. "Ninguém nos escuta, no dia do bloqueio a polícia não quis ouvir nada, atirou para a população fugir, saíram da linha férrea até as casas do povo, batendo na gente", relata Lafaiete.
Horas depois do bloqueio, Manuel Menezes Sirica aguardava na sua casa uma resposta para saber quando se reuniriam com a Vale, mas a polícia interrompeu a espera e ele passou a noite na delegacia junto com outros 14 moradores que tinham participado da manifestação. Enquanto o administrador de Moatize, Manuel Guimarães, reconheceu publicamente os defeitos das casas, os moradores ainda esperam alguma reação que seja da empresa e não da polícia.
Caminho de Malawi
Luis Martins, Diretor de Operações do Corredor de Nacala, se apresenta como funcionário da CDN – Corredor de Desenvolvimento do Norte – ele foi cedido pela Vale para o cargo e hoje é um dos quatro brasileiros em postos diretivos nessa linha.
Martis prefere não falar sobre o carvão. Diz, somente, que a Vale "não transporta nada através desse corredor", mas reconhece que a intenção de tal concessão é chegar até a região de Moatize.
Na primeira quinzena de janeiro foi anunciado o polêmico acordo firmado entre a Vale e o governo do Malawi, país vizinho de Moçambique. Para auxiliar o transporte do carvão de Moatize, a linha férrea de Nacala irá cruzar parte do território do Malawi.
Privilégios
Tal medida privilegia os interesses da mineradora por sobre os interesses moçambicanos, em uma estratégia de desenvolvimento que autoriza uma empresa privada a negociar questões governamentais de relacionamento entre os dois países. Além da Vale o governo moçambicano ofereceu à produtores brasileiros do Mato Grosso, aproximadamente 6 milhões de hectares de terra para o cultivo de soja, milho e algodão. Tais territórios circundam a linha férrea de Nacala.
De acordo com Luis Martins, responsável pelo Corredor, os produtores convidados pelo governo moçambicano não têm nenhuma relação com a empresa ou com a linha férrea.
Enquanto a população do Cateme aguarda uma solução, a Vale anuncia um novo projeto de exploração de fosfato na região de Nacala e o interesse em explorar o estado de Niassa, também na região norte do país.
P.S.
Ignacio Lemus Deluca e Julia Nassif de Souza. Publicado em Caros Amigos.
Fonte: Diário Liberdade

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