segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Não adianta lutar pela humanização dos animais quando se aceita a existência de humanos de segunda categoria"



Tempos atrás, escrevi neste site a história, real, de um cão que resolveu colocar o focinho em uma vasilha de plástico, ficou preso e saiu em disparada com o latido sufocado no recipiente (Leia clicando AQUI). De onde estava, vi metade da cidade se mobilizar para salvar o pobre que, no desespero, cruzava as ruas sem a menor prudência. Dava dó. O garapeiro, o guarda de trânsito, os motoristas e os casais de namorados: não houve quem, diante da cena, não se mobilizasse para arregaçar as mangas e salvar o animal. Foi daquelas provas de que a humanidade ainda tinha jeito: não perdeu a sua capacidade de sentir nem de transferir a sua humanidade a quem passa por apuros. É o que se chama de alteridade, ainda que o outro tenha rabos e patas.
Foi o que pareceu, também à primeira vista, o resgate na última semana dos cães da raça Beagle em um laboratório de testes em São Roque, no interior de São Paulo. Segundo as primeiras notícias, os cães estavam assustados e alguns, machucados. Em um país que só agora parece pegar gosto em se mobilizar para exigir direitos de naturezas múltiplas – da redução da passagem de ônibus ao fim da corrupção, da gripe e da maldade em todos os corações – o direito dos bichos virava uma pauta – digníssima, note-se. Ao que parece, é cada vez maior o número de pessoas indispostas a aceitar maus-tratos em animais. Um grande avanço para quem, até pouco tempo atrás, aprendia a cantar na escola um hino ao aniquilamento felino. Hoje, quem ousou um dia atirar o pau no gato não se elege nem para síndico do prédio – o vereador mais bem votado da maior cidade do País, por sua vez, tem o desenho de um cão, e não a sua foto, como bandeira de campanha.
A consolidação das leis de proteção de animais e a construção de hospitais públicos veterinários são símbolos dessa transformação. (Dia desses, um vizinho bateu à porta da casa de minha mãe com uma ameaça: se o nosso gato voltasse a arranhar a lataria do seu carrão, o gato apareceria envenenado e morto em casa. Diante da gentileza, ela foi até uma delegacia da Polícia Civil e registrou o boletim de ocorrência. Saiu de lá com a garantia de que se o gato tivesse uma simples gripe a partir dali, o sujeito seria intimado, acusado, eventualmente processado e eventualmente preso por maus tratos. Sem direito a fiança. Ao menos na lei, o direito à humanização dos bichos prevalece sobre a humanização dos automóveis. E é bom que seja assim).
O episódio do resgate dos Beagles, no entanto, diz mais sobre o nosso encarceramento do que o dos bichos. Diz muito também sobre a alienação cultural em relação ao que nós mesmos consumimos e alimentamos. É mais ou menos como se, aos 30 ou 40 anos, alguém se chocasse ao descobrir como é que as crianças vieram parar no mundo. No caso, não as crianças, mas as vacinas, os medicamentos, os tratamentos, os testes. O que não deixa de ser curioso: nosso primeiro contato com as galinhas é uma caixa de isopor com doze ovos que não foram gerados espontaneamente em uma gôndola de supermercado. Tampouco o churrasco do fim de semana. O que os olhos não veem, dirão os despreocupados, o coração não sente, e não precisamos assistir ao aniquilamento de bois e vacas nos pastos e frigoríficos para saber como surge o almoço, nosso e dos pets a quem oferecemos abrigo, proteção e alimento. Nesse sentido, a visualização da dor, simbolizada pelos Beagles – como não querer levar para casa? – parece ter produzido uma revolta tardia. Como escreveu um amigo: como vocês achavam que eram feitos os testes de medicamentos? Com jacas?
A resposta pode ser bem melhor do que as que vêm sendo formuladas após o episódio. Por exemplo: transparência, monitoramento, redução do uso de animais e métodos para evitar a dor desnecessária são mais do que recomendáveis. Inclusive para a produção de alimentos. Hoje, a imagem das empresas está diretamente associada à sua responsabilidade em relação ao meio – e, consequentemente, à sua capacidade de evitar desperdícios, o uso de trabalho infantil ou escravo e a ação agressiva ao ecossistema. O uso de animais em laboratórios passará pelo mesmo processo: quanto menos cruel o processo, mais chances de a pesquisa ser socialmente aceita. É o que vai separar os tempos futuros, de testes com células-tronco e outras inovações, com os tempos ancestrais, de sacrifícios, imolações e desprezo à vida, qualquer forma de vida.
A se notar as manifestações sobre o episódio, no entanto, ainda estamos longe desse salto civilizatório. Não que adorar animais seja sinônimo de desprezo a pessoas. Mas o precedente é, no mínimo, curioso. Em conversas, posts e artigos de jornais, o que se vê é a confirmação de um movimento, já citado aqui outras vezes, contraditório: a humanização dos animais e animalização do ser humano. Na crônica citada, recorri a uma sociologia de boteco para rabiscar uma explicação ao fenômeno: à medida que as cidades crescem, passamos a conviver cada vez mais em ambientes insalubres; esbarramos no trabalho, nas escolas, nas casas de vizinhos e outras instituições fechadas com todo tipo de competição, ganância, trapaça, preconceito e intolerância. Nesse ambiente, nos animalizamos e a ideia de lealdade se transforma em valor absoluto – e raro pelo contraste. Nessa, os cães ganham uma aura sagrada, mais ou menos como uma divindade indiana: são leais, amorosos, gostam da gente quase gratuitamente e não pulam o muro de casa para nos trair com o dono do cão vizinho. Os homens, nessa visão, são abjetos, pouco confiáveis. Elimináveis, portanto.
Nos jornais, como a candidatar-se ao Prêmio Relincha Brasil 2013 – expressão de outro amigo – houve quem escrevesse que, em vez de Beagles, a ciência usasse humanos em seus testes. Por exemplo, presidiários. Eles poderiam, chegou a sugerir a colunista, aceitar atuar como cobaias em troca da redução das penas. Não poderia ser mais clara: não aceitamos menos do que a humanização dos animais, mas não nos importamos com o estabelecimento de humanos de segunda categoria. Os Beagles estariam, assim, em uma categoria intermediária entre os brancos livres detentores de direito e os negros, pobres e mulatos, os únicos que afinal cumprem pena, sem serem dignos de pena, no Brasil - ainda que mofem em detenções insalubres sem o direito sequer de serem julgados. Franz Kafka, que no livro A Metamorfose transformou o personagem Gregor Samsa em um enorme inseto – seu alter ego desprezado por sua tuberculose, segundo a interpretação mais plausível – não iria tão longe. Séria ou não, a proposta, de apelo popular indiscutível, lançou as bases de uma nova categoria de indignação: a humanização seletiva. Os ratos deixados para trás na operação resgate em São Roque não poderiam se sentir menos prestigiados.

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