terça-feira, 7 de junho de 2011

A conta ainda está aberta


Foto: Paulo Leite/AE
Justiça brasileira precisa esclarecer os crimes cometidos durante o regime militar.
A ditadura, instaurada em 1964 por meio de um golpe que terminou com a democracia no Brasil, cometeu graves crimes contra os direitos humanos. O presidente legítimo do País foi deposto; parlamentares e juízes foram destituídos; todos os sindicatos e associações populares sofreram intervenção; os meios de comunicação passaram a ter severa censura; escolas e universidades foram invadidas. Centenas de milhares de pessoas foram presas arbitrariamente, grande parte delas submetida à tortura nos interrogatórios, muitos foram mortos.
O regime militar perseguiu e buscou destruir tudo o que tivesse a ver com a democracia: Parlamento, Justiça, partidos políticos, sindicatos, organizações populares, entidades educacionais, imprensa, editoras, personalidades políticas, culturais, artísticas. Houve uma militarização completa do Estado brasileiro, com o Serviço Nacional de Informações (SNI) ocupando lugar central no regime e no controle e repressão dos opositores ou supostos divergentes.
A ditadura se norteou pela Doutrina de Segurança Nacional, instrumento ideológico dos Estados Unidos na Guerra Fria que condenava todo dissenso como sabotagem. A doutrina foi difundida no Brasil pela Escola Superior de Guerra, cujos principais próceres eram Humberto Castello Branco e Golbery do Couto e Silva.

Golbery do Couto e Silva, prócer do uso da tortura e desaparecimento de opositores, é condecorado por serviços "notórios" ao Estado. Foto: Arquivo AE

Esse movimento desembocou, depois de várias tentativas anteriores contra Getúlio Vargas, JK e o próprio Jango, no golpe de 1964, que reorganizou o Estado brasileiro em torno das FFAA (abreviatura de Forças Armadas).
Para extirpar tudo o que definiam como subversão, legitimaram o uso da tortura e a desaparição física dos opositores. Foi um regime de terrorismo de Estado, que cometeu atrocidades contra os direitos humanos de todos que classificava como opositores.
A ditadura esgotou-se, conforme seu modelo econômico foi golpeado duramente pela crise da dívida (haviam endividado o País com empréstimos a juros flutuantes e estes subiram drasticamente), pelo crescimento da oposição social (especialmente com as greves do ABC no período de 1977-1979) e da -oposição política (com os avanços eleitorais do MDB). No entanto, a derrota não foi abertamente consumada: foram os próprios ditadores que comandaram o processo de transição para a democracia.
No bojo dessa manobra, a ditadura definiu um calendário de transição: passaria à eleição do presidente da República, de forma indireta, em 1985, e uma Lei de Anistia. Havia uma ampla campanha pela anistia geral e irrestrita em relação a todos os condenados pela ditadura, incluídos os exilados. A ditadura decretou uma anistia que, sob o pretexto de pacificar os conflitos e esquecer o passado, incluía a todos, torturadores e torturados, repressores e reprimidos.
Foi dessa forma que se pretendeu prescrever de forma total e definitiva todos os crimes cometidos durante a ditadura, colocando no mesmo plano os que haviam exercido a violência sistematicamente em nome do Estado militar e os que haviam resistido a ela, apelando para o princípio consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, do direito à resistência armada contra as tiranias.
Retirada do poder
A transição da ditadura à democracia transcorreu nesse marco, incorporando a Lei da Anistia da própria ditadura. O tema não voltou à discussão, a oposição se valeu dela para a liberdade dos presos políticos, o retorno dos exilados e, no marco do projeto de transição dirigido pelos militares, reorganizar suas forças políticas e sociais. A democratização conviveu assim com a Lei da Anistia e a abolição total da -possibilidade de investigação dos crimes da ditadura.
Nos outros países da região, a retirada dos militares do poder se deu em condições um pouco distintas. No Uruguai e no Chile, as ditaduras convocaram referendos que pretendiam legalizar a sua prolongação no poder, mas foram derrotadas, configurando assim um quadro de revés político no final do regime militar. Na Argentina, os militares no poder tentaram reativar uma reivindicação tradicional do país diante da Inglaterra – a recuperação das Ilhas Malvinas – mediante operação militar, em que conseguiram galvanizar o apoio nacional, até que foram derrotados, com comportamento vergonhoso da oficialidade, que desertou, abandonando os soldados à sua sorte. A comparação desse comportamento com os selvagens interrogatórios que essas mesmas armas realizavam contra os opositores só aumentou a frustração e a ira popular, fazendo com que fosse abreviado o fim da ditadura.
Assim, ao contrário do Brasil, as ditaduras argentina, uruguaia e chilena sofreram derrotas políticas no final desses regimes. Isso as enfraqueceu para poder limitar as investigações sobre o ocorrido durante as ditaduras. Praticamente todas elas apelaram para o expediente da Anistia, em que incluíam a si mesmas. Porém, uma vez terminado o regime militar, não tiveram força política para manter a limitação que impunham.
No Brasil, as FFAA comandaram o processo de transição política. Se houve a derrota de Maluf no Colégio Eleitoral, isso não pode ser caracterizado como um revés politico do regime militar, porque o outro candidato já não era Ulysses Guimarães – com quem os militares tinham muitos problemas –, mas o moderado Tancredo Neves, no marco de uma aliança do PMDB com o PFL, com quadros provenientes da ditadura. Pode-se dizer assim que a transição para a democracia se deu sob controle do regime militar.

A eleição de Tancredo Neves (à esq.) foi um dos marcos do controle militar na transição para a democracia. Foto: Reginaldo Manente/AE

Comissão da Verdade
Com a volta à democracia, passamos inicialmente por um momento de não retomada das violações dos direitos humanos. Foi durante os anos 90 e, especialmente, na década passada, que a questão da não prescrição dos crimes de tortura e da necessidade de divulgação de todos os documentos referentes ao período da ditadura apareceu com temas relevantes. O governo Lula considera que abriu a todos os arquivos à sua disposição. Mas aqueles de posse das FFAA foram destruídos, segundo estas, o que impede a apuração dos fatos. Na mesma direção, vários setores militares consideram indevido voltar a um tema considerado superado e que traria discórdias políticas. Alegam que os temas da violência durante a ditadura deveriam abarcar também aqueles cometidos pelas forças de resistência à ditadura.
A iniciativa de um Plano Nacional de Direitos Humanos, em 2009, não conseguiu força política suficiente para avançar, ao unir no mesmo documento temas diversos, como os da tortura e do aborto. Atraiu, assim, adversários muito distintos. Tornou-se inviável. A proposta da Comissão da Verdade no governo Dilma busca limitar seu objetivo, centrando-se na apuração dos fatos, sem tocar no tema do castigo a seus responsáveis. Consegue um consenso mais amplo, mas ainda assim a resistência de setores militares se faz sentir. Na aprovação parlamentar da proposta do governo, no formato enviado ao Congresso, se verificará se a força lograda desta vez permitirá que, finalmente, o Brasil esclareça todos os aspectos pendentes de esclarecimento sobre as sistemáticas violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.
Emir Sader é graduado em Filosofia e coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

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