Marcha das Vadias de Belém 2012. Foto de Tarso Sarraf/AE |
Era um dia de sol alto e forte, numa Belém que ultimamente se
mostrava toda chuva. E eram aproximadamente 700 pessoas cansadas de
tanta opressão cotidiana, que sob o lema “Lugar de mulher é onde ela quiser”,
decidiram movimentar o centro de Belém naquela manhã de maio e vento.
Da escadinha da Estação das Docas até a Praça da República.
A intenção era bem delimitada e lógica. Os seios, sutiãs, calcinhas,
punhos em riste e cartazes categóricos irreverentes ilustravam que ali
se falava contra o disciplinamento exacerbado dos corpos femininos,
contra a violência, a culpabilização, os mitos e medos, as diferenças
nas vivências de liberdades individuais e sexuais para homens e
mulheres, o viés sempre negativo dos ciclos femininos e, especialmente,
dizia sobre as patentes e lastimáveis expressões contemporâneas destes
fenômenos e a urgência por transformações coletivas, em níveis de
consciência e de práticas.
Apesar disso, foi interessante perceber uma marcha múltipla,
horizontal. Confundindo pra esclarecer. Esclarecer que as questões de
gênero e os lugares, símbolos e classificações injustamente reservados
às mulheres na sociedade, incomodam muita gente, de diversas
procedências, filiações e associações. Então, a Marcha das Vadias de
Belém foi como um encontro inusitado entre esquerda e direita, donas de
casa e prostitutas, intelectuais orgânicas e acadêmicas, burocratas e
artistas. Um encontro bonito. Talvez difuso em alguns momentos, talvez
cheio de fragmentos e colagens relativamente contrafeitas. Mas, belas.
Exageradamente democrático, eu diria.
Então, eram coletivos, associações, partidos, sindicatos, grupos
independentes e indivíduos. E eram diversas as demandas que se
entrecruzavam. Marchando pela liberdade e igualdade estavam
representantes de mulheres feministas, ribeirinhas, mulheres de
terreiro, negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, domésticas, um
interessante coletivo de homens feministas, as mulheres agricultoras e
seu contexto belicoso no sul do estado, líderes sindicais, prostitutas
lutando pela regulamentação de seu trabalho, religiosas pela reforma
agrária, as “pouco religiosas” pelo direito pleno e irrestrito às
determinações sobre o próprio corpo. E ainda haviam aquel@s, que eu
também observava, que paravam nas calçadas com olhos surpresos e
curiosos indagando do que se tratava tal mobilização. Ou então os que
apressavam o passo, ofendidos com tanta voz, cor, corpo exposto e
palavras silenciadas no cotidiano: vadia, sexo, buceta, feminismo,
menstruação, estupro, santa, livre, puta…
E enquanto marchávamos eram entusiasmados os tantos discursos que se
sucediam, dizendo sobre socialismo, capitalismo e patriarcado, salários
de professores, equalização de salários entre mulheres e homens, 10% do
PIB para educação, direitos das prostitutas, creches públicas, estupro,
feminismo, Pare Belo Monte!, sexualidade, assistência estudantil nas
universidades públicas, vegetarianismo, ambientalismo, Xingu+23; todos
os segmentos buscando liames com a luta contra o machismo, reconhecendo e
legitimando a marcha. Na vanguarda, as impulsionadoras da marcha eram
militantes caracterizadas de Frida Khalo, Dandara, Pagu, Anita
Garibaldi, Olga Benário, Iracema, entre muitas outras.
Vivendo por aqui há apenas poucos meses, reflito e ouso compreender
esta miscelânea de demandas e organizações. Eu tenho pisado devagar
nesse chão, com respeito. Quando cheguei, do Pará sabia apenas lambada,
borracha, Amazônia, conflito fundiário, Guerrilha do Araguaia e Doroty Stang.
Porém, meus olhos pedintes e observadores já prestam muita atenção em
muitas outras coisas. A primeira delas é o fato de a Amazônia não ser o
vazio demográfico desabitado que o distanciamento geográfico nos faz
crer. E o que enxerguei foram paraenses extenuados de tanto viver neste
norte excluído, dominado, esquecido. Que não perdem chances de ocupar as
ruas e bradar por justiça, igualdade, liberdade e políticas públicas.
A mim, o Pará é um rico e fascinante paradoxo. De natureza, pessoas,
culinária, dança, história, música, chuva, sol, folclore, mitos, lendas.
Aqui já escutei histórias sobre icamiabas guerreiras
que mutilavam um dos seios para que o arco encaixasse no em seu torso
firme e assim pudessem melhor guerrear. Foram intituladas “amazonas”
pelos portugueses que relatavam o que viam aqui pelo norte, e eram
descritas como livres, independentes e sem maridos, arqueiras primorosas
e defensoras da floresta.
Também escutei sobre o boto, cuja existência (controversamente), em
alguns casos, também atenua a culpa e estigmatização femininas ao se ter
filhos sem pai nos arquipélagos que cortam as baías, apesar de resvalar
mais uma vez no labirinto da fragilidade e suscetibilidade das
mulheres. Da Matinta Pereira, visagem mulher, bruxa, imponente e
assustadora, que fuma tabaco e é respeitada por todos os caboclos da
região amazônica. E nada me tira da mente que escutar essas lendas e
histórias é fortalecedor para a subjetividade feminina nestas terras,
porque de onde eu vim as protagonistas destas narrativas, em geral,
morrem de amor, ou se demancham em lágrimas ou morrem espancadas por
homens. Mas isso são apenas pressupostos superficiais meus.
Para além destas elucubrações histórico-mitológicas pouco
fundamentadas, eu diria que toda a cybermilitância e articulações
globais que envolvem a marcha das vadias mobilizaram tantos indivíduos e
segmentos sociais neste dia porque todo o Pará anda cansado de tantos
anos de ocupação exploratória. De ver o resto do Brasil de costas. De
ocupar a quarta colocação no ranking das ocorrências de homicídios femininos,
prática que – já não é novidade – não ocorre em vias públicas, mas sim
no interior dos lares sacrossantos e imaculados das famílias
brasileiras. De ter uma rede de serviços à infância, mulher e família
insuficiente e desarticulada. Da Justiça lenta e inócua. De meninas adolescentes em celas com 20 homens.
A Marcha das Vadias de Belém descortinou a mim um Pará de muitas
lutas, foi uma mobilização, que apesar de não perder a centralidade de
seu propósito, foi locus de agregação, de multiplicidade, e me
disse alto que a luta das mulheres pela liberdade tem aliados dispostos a
unir esforços e ocupar todos os espaços, discutir tabus, revelar
repressões naturalizadas e construir outra sociedade.
Fonte: Blog Blogueiras Feministas
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