Texto de Érika Pellegrino.*
Anatomia é um conhecimento básico, que aprendemos de maneira mais intensiva no primeiro ano da faculdade de medicina, apesar de retornarmos ao tema o tempo todo durante o curso. Era a matéria que eu mais odiava, muito técnica, milhares de nomezinhos de origem grega ou latina pra criar todo um novo vocabulário e entendimento sobre o corpo que eu sabia que ia usar muito pouco na minha carreira de psiquiatra. Digo isso para me desculpar de antemão por alguma imprecisão ou dificuldade de passar o conhecimento. Não sou uma especialista e também não espero que esta pequena contribuição seja capaz de esclarecer toda a questão da anatomia feminina, já que com livros cheios de descrições e desenho, professores do lado, mesas com cadáveres e peças anatômicas dissecadas já era difícil entender o que ficava onde e para que.
Bom, então para que me proponho a escrever um texto que talvez seja de difícil compreensão sobre um assunto que nem gosto? Porque conhecimento é valioso, e o conhecimento sobre os nossos corpos é essencial –- nos dá poder sobre quem somos, como funcionamos, porque as coisas acontecem de determinada forma. Só assim dá pra questionar e não aceitar o que é colocado como verdade e realmente se apoderar do corpo com propriedade.
Começando do começo
Durante o desenvolvimento embrionário, até por volta de 7 semanas, todo mundo é igual, não dá pra “saber o sexo” (anatômico) ainda. Conforme a presença e expressão de certos genes e hormônios, a maioria dos embriões vai ter o tecido da região genital diferenciado em feminino ou masculino. Uma outra parte apresentará alguma alteração nessa diferenciação pelos mais diversos motivos, e a medicina vai chamar isso de intersexo; nesses casos não dá pra dizer, só olhando externamente, se o sexo anatômico é masculino ou feminino. Isso tem uma série de implicações que não vai dar tempo de discutir aqui, quem sabe em outro post.
Mas o que nos importa para o assunto de hoje é: o que a sociedade e a medicina vai chamar de meninos e meninas na verdade têm órgãos correspondentes, derivados de um desenvolvimento divergente (porém análogo) de um tecido que era comum. Vocês já repararam que na parte de baixo do pênis tem um prega (chamada rafe), assim como no meio dos testículos? Pois é, porque aquilo era separado e se uniu, e uma marca é deixada “no meio do caminho”. A mesmíssima estrutura vai formar a bolsa escrotal no masculino e os grandes lábios no feminino; o corpo do pênis no masculino e os pequenos lábios no feminino; a glande do pênis no masculino e o clitóris no feminino.
Ou seja, não existe isso de que meninos têm pênis e meninas não.
Não somos barbies, quando olhamos para nossa genitália não vemos um pedaço liso de pele, uma grande ausência do precioso falo. Vemos os nossos órgãos genitais femininos, no caso das mulheres cissexuais, a vulva, que é a parte externa da genitália, composta pelos grandes e pequenos lábios, abertura da vagina e da uretra e o clitóris, que é coberto por uma pelinha (prepúcio). E ainda lá para dentro temos a vagina. Tudo formado pelo mesmo tecido, que se arranjou de formas diferentes no período embrionário. Ou seja, se é verdade que não temos pênis, é verdade também que os homens cissexuais não têm vulva ou vagina. Mas não estamos falando por aí em “inveja da vulva”, estamos? Isso porque essa frase de efeito, usada em tom de mais pura realidade objetiva que só as ciências biológicas conseguem dar, não é mais do que uma retrato da autoridade, de quem manda, de quem e do que deve ser invejado. Não tem nada a ver com anatomia, tem a ver com machismo.
Conhecimento é poder
Mas acontece que os meninos cissexuais acabam nascendo com a sua genitália balançando lá no meio das pernas, externalizada, que ele precisa lavar, tocar, mexer até pra fazer xixi. Nossa civilização coloca símbolos fálicos para todo lado e eles se sentem orgulhosos do que têm, usam como símbolo de poder. E, no nosso mundo, poder é demonstrado de forma agressiva. “Pega no meu pau!”, dizem os meninos cissexuais na escola (ou os adultos com mentalidade de pré-adolescentes), fazendo algum gesto obceno. Se alguém duvida de sua masculinidade, estão prontos para ameaçar abaixar as calças e mostrarem o que têm ali. As meninas cissexuais não fazem isso, não só porque seriam execradas, mas porque não faz sentido. Não têm o que mostrar ali, não têm do que se orgulhar, segundo essa lógica cultural. E além do mais, ninguém questiona a “feminilidade” delas como algo ofensivo, elas já são meninas, se disserem que elas têm culhões, isso é um elogio (e não necessariamente porque o masculino é valorizado, mas também porque o que é valorizado vira automaticamente masculino).
Então, no fim das contas, paras meninas não é tão simples. As coisas não são tão proeminentes e sempre ouvimos que é feio ou errado. Não é fácil enxergar tudo, demoramos para desenvolver intimidade, para explorar mais, parece que não deveríamos estar mexendo ali. E aí fica mais difícil descobrir onde está o prazer, experimentar de que jeito é gostoso.
Poxa, sou virgem, né? E se eu ficar mexendo não posso “perder” a virgindade?
Bom, o hímen é uma pele fininha que fica na entrada da vagina, é flexível e tem uma abertura no meio. É por ali que sai a menstruação e outras secreções vaginais. Também é por onde entra o dedo ou o absorvente interno. Em alguns casos, o orifício pode ser muito pequeno e causar algum desconforto ou dificuldade para introduzir algo pela entrada da vagina, mas geralmente ele se alarga com a prática. Em outros, ele pode ser totalmente fechado, e aí na época de menstruar o sangue não tem por onde sair e geralmente precisa fazer uma pequena cirurgia para abrir.
O hímen tem poucas terminações nervosas e pode ser rompido em algum ponto quase sem percebermos, ou causando um leve desconforto, e ele fica lá, para sempre; não desaparece quando transamos pela primeira vez. Repito, ele é um resquício embrionário, um pedaço de pele. Não é lacre de segurança, nem certificado de garantia. O rompimento do hímen é comum na maioria das mulheres e pode acontecer, por exemplo, durante a penetração (de um pênis, dos dedos seus ou d@ parceir@, de um brinquedo), na primeira, segunda ou milésima vez.
Virgindade é uma construção social e não uma instância anatômica, e “perdê-la” tem a mesma definição pra meninos e meninas: é a primeira vez que fazemos sexo (e aí acho que você pode considerar o que quiser, a virgindade é sua, e sexo é uma coisa muito, mas muito ampla). Não dizemos que os meninos deixam de ser virgens quando se masturbam, não é? Então como é que podemos perder a virgindade sozinhas???
Então vamos!
Toda a região da vulva é bastante sensível à estimulação sexual, assim como a parte mais externa da vagina (mais para o fundo ela fica menos sensível), o períneo (região entre a vagina e o ânus) e o ânus. Conhecendo as áreas do nosso corpo que podem nos proporcionar prazer e treinando elas para isso vai fazer tudo ficar muito melhor. Nós temos um circuito nervoso prontinho só para ter orgasmo.
No caso do pênis, o circuito do orgasmo é o mesmo da ejaculação, então é difícil gozar sem ejacular (tanto que frequentemente usam-se essas palavras como sinônimos). Num outro momento, podemos explicar como funciona para os homens e para algumas mulheres transexuais, mas o fato é que a nossa linda anatomia nos permite simplesmente ter prazer sem absolutamente nenhuma função reprodutiva direta nisso. E apesar do patriarcado tentar voltar isso contra nós, e algumas culturas condenarem o prazer feminino porque atribui como unica finalidade sexual a reprodução, nós achamos que isso é muito ultrapassado e também não queremos transar com essas pessoas. Queremos sexo com pessoas que nos deem orgasmos!
Mas então por que até 70% das mulheres não conseguem ter orgasmos?
OK, temos um circuito nervoso prontinho para nos dar orgasmos. E também temos circuitos de linguagem no cérebro iguais aos das pessoas da China, e não sabemos escrever ideogramas. Porque o nosso cérebro aprende o que a gente treina, e se a gente não treinar ter orgasmos, vai ser bem mais difícil. E a gente não treina porque não conhece o próprio corpo. Como eu disse, os meninos cissexuais conhecem, vão lá desde cedo, uma, duas, dez mil vezes, treinam frequentemente imaginando pessoas que os excitam e vendo revistas ou filmes que são vendidos a rodo para eles (mas quase não existem direcionados ao público feminino) e aí fica todo mundo falando: fato biológico, homens são mais visuais, se excitam rapidamente e chegam mais rapidamente ao orgasmo. Aham. Mulheres são mais “sensação”, gostam mais do toque, mas será coincidência que as únicas experiências que ela teve foram com @ parceir@? Uma olhada no espelho, masturbação de vez em quando, com um certo sentimento de vergonha, debaixo das cobertas?
O que é preciso para ter orgasmos é ter orgasmos
É preciso ensinar o seu circuito nervoso, que leva os estímulos ao cérebro, que dependendo da forma que você é estimulada, fica bom assim, você goza. Repetição, repetição, repetição = comportamento aprendido. Claro que diversos fatores emocionais podem atrapalhar, mas podem ajudar também. Descubra do que você gosta. Filmes, contos eróticos, fotos? Treine sozinha, nada é ridículo, é só você e seu corpo.
Tradução: Eu nem sabia que havia uma palavra para o resultado inevitável do movimento de me esfregar na minha cadeira… o espasmo implosivo tão atordoadamente completo e perfeito que por alguns breves momentos eu não poderia questionar sua inerente validade moral. – Do quadrinho Fun Home, de Alison Bechdel
E claro, falamos de algumas questões anatômicas importantes, mas não tocamos no ponto principal aqui. A parte mais sensível (com mais terminações nervosas) do corpo do homem cissexual é a glande (a cabeça) do pênis. E o que é que eu tinha falado que tem a mesma origem embrionária na genitália feminina?
Sim, o clitóris!
Fato, o clitóris tem a única função de proporcionar prazer, mais nada. Não protege lugar nenhum, não recebe o pênis para funções reprodutivas, nada. Só serve para isso, então dê a ele a devida atenção! O circuito nervoso do orgasmo sai do feixe nervoso do clitóris — ou seja, é ele que nos faz gozar. Claro que o orgasmo é cerebral e estímulo em outras áreas pode proporcionar prazer, mas por que não facilitar? Ele está lá para isso e tem duas vezes mais terminações nervosas que o pênis. Peraí, vou repetir: duas vezes! Lá, logo acima da uretra, uma bolinha menor que uma ervilha. Tem uma pele cobrindo, mas quando você estiver excitada ela aumenta de tamanho e fica bem mais fácil de achar.
O clitóris na verdade é um órgão maior e mais comprido, pois continua internamente e enche de sangue durante a excitação sexual. Alguns estudiosos acreditam que o estímulo dessa parte interna durante a penetração poderia corresponder ao tal ponto G — que, desculpe informar, não tem um local anatômico definido, mas divirta-se procurando! O clitóris pode ser estimulado durante uma relação sexual com a mão, com vibradores específicos ou anéis vibratórios penianos, pela fricção com a pelve d@ parceir@, com a língua, os dedos…
Enfim, conheça o seu corpo, se goste, goze sozinha para depois ensinar a alguém como te fazer sentir isso. Isso vale tod@s. Sei que esse texto foi majoritariamente direcionado a mulheres cissexuais, mas independente da sua anatomia genital (e se ela é compatível ou não com o seu gênero), pense na questão da necessidade de treino para conseguir ter orgasmos. Claro que pode ser ainda mais difícil, mas lembre-se que mesmo que você vá passar por uma cirurgia de transgenerização, ou tomar hormônios, você vai usar a mesma estrutura nervosa e vascular para ter orgasmos. Se você não treinar antes desses procedimentos, depois pode ser mais difícil saber como deveria ser e mesmo avaliar o sucesso ou o que dá para melhorar.
*Érika Pellegrino é médica, está fazendo psiquiatria e acha o máximo ser paga pra ouvir inúmeras historias interessantes todos os dias.