terça-feira, 23 de julho de 2024

Entrevista: Não oferecer uma utopia é uma limitação imediata da esquerda

Foto de José Eduardo Bernardes / Brasil de Fato

O historiador indiano comunista Vijay Prashad veio ao Brasil e falou com exclusividade à Jacobina sobre um novo mundo possível, no qual o horizonte de mudanças radicais estejam junto de ações práticas para enfrentar a segunda onda da extrema direita mundial, com foco nos de baixo e no Sul Global.

No novo Armazém do Campo, situado na região central de São Paulo, entre produtos de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), seu café e a livraria da editora Expressão Popular, encontramos o historiador, jornalista e militante comunista indiano Vijay Prashad.

Dos mais ativos e prolíficos intelectuais contemporâneos, Prashad veio ao Brasil para participar de debates e seminários, mas também para visitar seu amigo e colaborador intelectual Noam Chomsky, que se recupera de um acidente vascular cerebral em São Paulo – além de encontrar o presidente Lula.

Focado no anticolonialismo, nas lutas dos povos do Sul Global e na transformação socialista da sociedade – mas olhando do ponto de vista dos debaixo –, Prashad fala, nesta conversa exclusiva com a Jacobina, sobre as relações entre os países do BRICS, a distância entre os povos brasileiro e indiano, o avanço da extrema direita no mundo, a hegemonia do neoliberalismo e neofascismo nos últimos tempos, mas também a necessidade da esquerda construir sua própria utopia para oferecer um horizonte às pessoas comuns.

O seu país, a Índia, é o mais distante do Brasil entre os membros fundadores do BRICS. Isso é curioso, pois a Índia é uma sociedade com muitas semelhanças com o Brasil. Como podemos mudar isso?

Bem, isso é uma questão interessante. Como podemos nos aproximar? Mas vamos pensar em diferentes níveis. Os nossos governos já são bem próximos. O que aproximou os governos indiano e brasileiro? Quando o Brasil buscava quebrar as patentes de medicamentos das grandes farmacêuticas, principalmente para pacientes com Aids, ele fez acordos com a Índia e a África do Sul. Então, no nível governamental, Brasil e Índia estão próximos, se entendem como complementares.

Mas em nível comercial não, as trocas entre Brasil e Índia são muito pequenas. Não é difícil entender o porquê disso. A Índia não é uma grande importadora de commodities brasileiras. Se você olhar para todos os grandes países da Ásia, particularmente a China, você verá que eles não importam muitos bens com valor agregado do Brasil: eles importam commodities primárias como a soja, por exemplo. Como a Índia não é uma grande importadora de commodities, logo ela não é uma grande parceira comercial do Brasil.

O Brasil é até certo ponto, o industrializado, mas os seus principais produtos de exportação não são os produtos que a Índia irá comprar. Teríamos que ver o que acontece quando o Brasil se reindustrializar. A Índia também não pode comprar energia do Brasil por conta da distância, e ela pode comprar energia muito mais barata dos seus vizinhos. Então, em termos de comércio, eu não vejo como isso poderia melhorar imediatamente.

Mas brasileiros e indianos têm que se conhecer. Os brasileiros não conhecem muito bem a Índia. Os indianos não conhecem muito bem os brasileiros. Temos níveis muito baixos de interação cultural, e eu me refiro aqui sobre a necessidade de compreensão recíproca das diferentes culturas.

Eu acho importante pensar em coisas como existir um estudo da Índia no Brasil e vice-versa. A criação de departamentos nas universidades brasileiras especializadas na Índia, outros especializados na Índia sobre o Brasil. Ou trocas jornalísticas. Nos últimos dez anos, a única grande notícia sobre o Brasil que chegou à Índia foi a prisão de Lula. Isso foi tratado como um assunto muito sério porque Lula é provavelmente mais conhecido, em certo sentido, entre a intelectualidade do que qualquer outra coisa no Brasil. Lula é o principal produto de exportação cultural do Brasil.

A única outra coisa que se sabe na Índia sobre o Brasil é o futebol. Nós, os indianos, somos loucos por futebol. E há aldeias e cidades na Índia onde uma parte torce pela Argentina e outra parte pelo Brasil. Pintam suas casas com a cor da Argentina ou do Brasil. As pessoas se dividem nessa rivalidade durante a Copa do Mundo. Quando você vai a um lugar como a Índia, as principais exportações culturais são futebol e Lula.

Se eu perguntar o que se sabe da Índia no Brasil, eu diria que é um conhecimento de baixo nível, talvez comida indiana. Eu já viajei muito pelo Brasil. Não vejo muita comida indiana. Sabe o que falta? Filmes indianos, música indiana, povo indiano. Há tão poucos indianos que viajam ao Brasil como turistas, embora mais brasileiros viajam para a Índia a turismo. Por quê? Para ioga. Há uma grande corrente de ioga como os brasileiros que vão para a Índia.

Não basta apenas que os governos interajam, porque isso está longe das massas. As pessoas precisam se conhecer. E vejamos, um dos pontos fracos do projeto BRICS é a falta de foco no aumento do contato entre pessoas desse bloco. Só para dar um exemplo super bobo, obter um visto entre a maioria dos países do bloco é difícil. Qual é o sentido de permitir que o capital flua, sem muita regulamentação, entre os países do BRICS, mas as pessoas não podem viajar?

Desde 2009, o BRICS negligenciou a colocação de recursos no contato entre as pessoas. Pensemos em programas de intercâmbio de estudantes. Por que o BRICS não pode financiá-los? Você pega estudantes brasileiros e os manda para a Índia por um semestre. Faz o mesmo com músicos, dançarinos etc. Imagine centenas de estudantes que poderiam sair da Bahia para passar três meses em uma escola indiana. Dançarinos fazendo projetos colaborativos. Você ficaria feliz em ficar na Índia por três meses, mas teria crianças indianas em sua casa. Uma troca direta financiada pelo projeto do BRICS.

Um último exemplo: quando aconteceu a eleição indiana mais recente, havia um único jornalista indiano no Brasil falando sobre a disputa, Shobhan Saxena, que é meu amigo, fala português e mora em São Paulo. Um único jornalista. Na Índia, eu sou o único jornalista que escreve na mídia do meu país sobre o Brasil. Isso é embaraçoso.

Portanto, a questão de vocês é uma ótima pergunta, mas não quero que a resposta fique apenas no nível do governo e do comércio. Eu diria que é muito importante para nós, como escritores e pensadores, gerar um entendimento mútuo entre nossas culturas.

Temos essa grande variedade de forças na Frente Ampla que governa o Brasil, e temos também muitas contradições. Na Índia, tentaram fazer o mesmo contra Narendra Modi. Como se fosse uma tática universal contra a extrema direita. Como você vê isso?

Eu considero que estamos em um período em que a classe média está dominando a ideologia política. Seja no Brasil ou na Índia, a classe média é o grupo que fornece a visão de mundo cultural dominante. Mesmo entre meus amigos, se eu disser que acredito no socialismo, eles vão olhar para mim e vão pensar “tudo bem, é interessante que ele acredite nisso, mas eu acredito no sistema, eu acredito no aeroporto, eu acredito na rodovia ou no carro novo que posso tentar comprar”.

A orientação geral é de que a sociedade seja definida pelas metas da classe média. É uma compreensão que se fundamenta no que a classe média sente que o capitalismo lhes proporciona. Uma sensibilidade pós-capitalista ou anticapitalista não define a classe média, seja no Brasil ou na Índia, pois ela ainda acredita na capacidade do capitalismo prover coisas. Isso tem um enorme impacto sobre os trabalhadores e os camponeses.

O trabalhador diz “não tenho dinheiro para ir ao shopping, mas eu quero ir a um deles”. Isso é melhor do que o socialismo, nessa visão, uma vez que segunda ela o socialismo seria a ausência de shoppings. Nesse contexto, não conseguimos definir o socialismo como “todo mundo pode ir aos shoppings”. Por quê? Porque estamos enredados pelo modelo. Isso é parte do nosso problema. A orientação geral do neoliberalismo está fortemente enraizada na classe média em todos os países.

Quando as pessoas dizem que o neoliberalismo está acabado, elas estão erradas. Apenas algumas políticas neoliberais são difíceis de implementar como a austeridade, mas isso não muda o fato que as aspirações da classe média sejam neoliberais.

As pessoas querem educação privada para as crianças e jovens, segurança etc. Portanto, o neoliberalismo se tornou uma concepção de vida comum. Agora, por que esse neofascismo apareceu? É uma questão complexa. Primeiramente, eu diria, porque o neoliberalismo é difícil de implementar.

Uma agenda neofascista mais dura não fala sobre austeridade, ela fala contra os imigrantes, os homossexuais etc. Ela fala sobre o crime e assim por diante. Os neofascistas não dizem que são contra o neoliberalismo, eles chegam e mudam de assunto. Sobre o que Bolsonaro fala? Homossexualidade, criminalidade. O que repete Bukele em El Salvador? Criminalidade. As massas não rejeitam, a princípio, o envio de policiais armados para esmagar criminosos.

O que Bukele está fazendo em El Salvador, os brasileiros têm feito, mesmo sob Lula, isto é, mandar a polícia para a favela com armaduras como as do Robocop para esmagar as pessoas – e a classe média abaixa a cabeça, pois sente que o crime é um obstáculo.

A homossexualidade também aparece como um obstáculo para a aproveitarmos nossa vida neoliberal. Surgem pensamentos como “e se meu filho vira homossexual?”, isso impacta negativamente a vida neoliberal. Os neofascistas aparecem porque os neoliberais não conseguem implementar uma política neoliberal.

Um neofascista pode chegar e dizer: “vote em mim, eu vou deixar você seguro, vou garantir que sua família esteja segura, inclusive em termos de sexualidade, e que sua comunidade esteja protegida de criminosos, imigrantes, drogas, tudo isso”. No fim, não é diferente do neoliberalismo, porque as pessoas ainda querem que a família e a comunidade sejam seguras e privadas.

Não conseguimos mudar essa aspiração. Você pode vencer como esquerda se o povo aspirar à eliminação das realidades neoliberais. O povo não acredita no socialismo. Então, é preciso defender as aspirações neoliberais. Imagine o quão horrível é a nossa política. Temos que dizer às pessoas que esse caminho não permitirá que elas sejam felizes.

Mas na verdade não estamos oferecendo uma proposta de felicidade. Nós nos tornamos a tendência política do não. Isso é um grande problema: “não faça isso, não faça aquilo, parem parem os neoliberais etc”. Nós não oferecemos uma utopia e essa é a limitação imediata da esquerda. A queda da União Soviética feriu a confiança de provermos uma utopia. Nós temos que voltar a oferecer propostas desse tipo.

Temos de voltar e apresentar propostas utópicas para mudar coisas como, por exemplo, “olhem para os chineses, eles aboliram a pobreza” e as pessoas dizem “ah, você está apenas fazendo propaganda chinesa”. Sim, mas eles aboliram a pobreza e você pode fazer isso e eles fizeram isso de forma diferente do que Lula fez, porque ele reduziu a pobreza ao fornecer transferências de dinheiro.

Os chineses, na verdade, aboliram a pobreza mudando as relações produtivas. São dois modos diferentes. A via chinesa é uma abordagem realmente transformadora. Sim, são dois caminhos diferentes, mas não estamos confiantes o suficiente para dizer que existe uma utopia que podemos oferecer às pessoas. A menos que falemos isso, seguiremos como o partido do não.

Então quando se diz, que os neofascistas, vassalos neoliberais, são mais utópicos do que nós. Porque os neofascistas estão prometendo a mesma utopia que o neoliberalismo: “Você terá uma casa, estará segura, terá sua comunidade, terá sua casa, seu carro, sua aposentadoria” – essa é a utopia neoliberal. Eles, na verdade, compartilham a mesma utopia. E os neoliberais dizem que vão levar você até lá por meio da destruição do Estado – seja Milei ou os neofascistas.

Entre todos eles, Milei, Bukele, Bolsonaro, Modi, todos eles se interseccionam em Bolsonaro, pois ela é a unidade dessas duas posições, neofascista e neoliberal, um “vamos destruir o Estado e oferecer uma utopia”. Meu ponto é onde está a utopia? Você não consegue ganhar as pessoas amedrontando elas. Você não pode construir uma política baseada no medo. A política de esquerda tem de ser baseada no amor.

E aqui, nós realmente vencemos Bolsonaro? Lula venceu a eleição, mas nessa frente ampla cheia de contradições antagônicas.

A Frente Ampla não venceu a eleição. Lula venceu a eleição. Lula é o fenômeno. Se fosse outra pessoa, ela teria perdido. Lula venceu a eleição, cara. Haddad é um grande cara, um homem brilhante, mas ele não é um fenômeno como Lula.

Agora, os neoliberais e neofascistas perderam no Brasil? Eu acho que não. Foi uma vitória tática conduzida por Lula. Mas olhe o inferno da Câmara dos Deputados e a minoria esquerdista em Brasília. Então essas alianças são úteis, se você obteve uma vitória momentânea, obviamente.

A questão é estratégica. Para que serve uma vitória presidencial? Isso avança no quê? Na minha opinião, a presidência deve ser usada para avançar com a ideia que nós temos de utopia. Estamos no governo, podemos abolir a pobreza. Podemos colocar o dinheiro na mão do povo e promover o consumo. Colocar os jovens na universidade no futuro.

No Nepal, eles fizeram uma campanha entusiasmada de massas para atrair os jovens, falando com eles que até você pode ir para a universidade. Agora, a esquerda sectária dirá, uma pessoa indo para a faculdade, dificilmente é grande coisa, você não tem ideia se não vem de uma família pobre, você não tem ideia do que é uma família pobre…

Uma pessoa ir à universidade muda toda a cultura de uma família. Todo mundo então sente que pode conseguir algo, com os jovens indo à universidade. Um governo de esquerda não resolverá todos os problemas. Nós temos que usar ele para criar no povo confiança nas nossas utopias. Acho que o que muitas vezes acontece é que os governos chegam ao poder e lidamos com o governo burocraticamente, não politicamente.

Mas não devemos chegar ao poder para ser burocráticos. É preciso chegar ao poder para aumentar a confiança da população e dizer que a utopia de esquerda é melhor que a neoliberal. Você tem que começar a provar que com vitórias práticas, coisas práticas, se melhora o padrão de vida das pessoas em uma cidade como São Paulo, tentamos até mesmo eliminar totalmente a falta de moradia, que é no mínimo embaraçosa.

A principal tarefa de um governo não é equilibrar o orçamento. Os neoliberais promovem sua utopia ao mesmo tempo que acusam o socialismo de ser uma espécie de utopia que, no entanto, não funcionou quando teve uma chance. E então estamos enfrentando isso. Mas por que estamos frustrados com isso?

Porque o fato é que a utopia funciona. A utopia deles funciona porque ela não é sobre a realização. A utopia deles é sempre sobre uma questão de competição. Então diriam que seu filho pode se tornar um grande sucesso no empreendedorismo e ser melhor que os filhos dos outros. A utopia deles tem dentro de si o fracasso de seus filhos, porque é um mundo de vitórias e derrotas.

Então, na verdade, a utopia neoliberal nunca pode falhar. Se meus filhos não conseguirem, o problema é dos meus filhos. Sim, eles são preguiçosos. Eles andam com os amigos errados. Todos aqueles antigos dramas familiares sobre os filhos entraram nessa “utopia”.

A nossa utopia diz que o fracasso não é possível. O que significa que você não deve ser um fracasso em uma sociedade socialista. Você nunca se sentirá um fracasso. Mas numa utopia neoliberal, ser um fracasso é possível, pois meus filhos têm de derrotar os filhos de todos os outros.

Mas na nossa utopia, esperamos que todos tenham confiança e levem uma vida boa. Portanto, a utopia pode falhar. Só que a utopia neoliberal está estruturada de uma forma tão inteligente que ela não falha, mas os indivíduos falham.

Chomsky vive. Conta pra gente sobre sua parceria intelectual com ele, incluindo o livro sobre Cuba.

Chomsky é um querido amigo e tem um grande senso de humor. Não é apenas o fenômeno Noam Chomsky, mas também uma extraordinária pessoa. Um grande intelectual crítico. Ele escreveu sobre a falência dos intelectuais diante dos regimes de horror no mundo. Esse ensaio é brilhante e ele escreveu isso nos anos 1960, antes do meu nascimento.

Somos amigos há décadas e há seis ou sete anos um editor me perguntou se eu não queria entrevistar Chomsky sobre as guerras dos Estados Unidos. E eu achei uma boa ideia. Despendemos horas conversando e eu fiz várias questões, que geraram A retirada, um livro já traduzido para o português e é bem popular. Nós temos escrito coisas juntos desde então. Publicamos manifestos políticos como contra o ataque ao MST.

Foi uma experiência muito divertida – porque pude passar todo esse tempo e ouvi-lo falar sobre as coisas. E ele fala de memória. Ele não olha para nada. Ele cita coisas de memória. Então eu pensei que era simplesmente incrível. E o livro é realmente bom porque é um resumo da nossa crítica ao imperialismo dos Estados Unidos.

Obviamente, Noam Chomsky e eu não viemos da mesma tradição política. Ele é anarquista. Eu sou marxista, acredito no comunismo. Temos algumas divergências. Não concordamos com a história da União Soviética e outras questões.

Mas meu Deus, se concordássemos com tudo, seria chato. Concordamos em 99% das coisas. E então quando fizemos aquele livro e eu terminei o manuscrito, enviei para ele, ele fez pequenos ajustes, mas ficou muito feliz. Depois entramos. Depois levei o livro comigo para Cuba.

Peguei a versão em castelhano e visitei Silvio Rodriguez, o cantor. Sim. E eu sei que Silvio é um grande fã de Noam Chomsky. Então fui à casa dele e lhe dei um exemplar do livro, e o Silvio me deu um livro grande que ele tinha acabado de escrever sobre música cubana para eu conhecer.

Então, eu indaguei a Chomsky que ele nunca escreveu nada sobre Cuba. Por que não fazemos algo em Cuba? Foi tipo, ok, vamos lá. Então passamos horas e horas e horas. Quer dizer, não sei quantas horas ficamos apenas conversando, na verdade.

Levamos isso não como uma entrevista, mas como uma conversa. E então ele falava e me perguntava e eu falava. E estive lá recentemente na Baía dos Porcos. Então eu estava descrevendo lá para ele, que nunca esteve na Baía. Então ele ficou interessado em saber como é a Baía dos Porcos.

Muito do nosso relacionamento nos últimos 20 anos tem sido eu contando a ele onde fui – como se fosse um experimento – e ele me contando que está lendo sobre o lugar. Na verdade, ele menciona isso em A retirada.

De qualquer forma, depois que recebi a transcrição dele, percebi que não podia ser um livro de entrevista porque estava uma bagunça. Então liguei para ele e disse: posso pegar um texto e fazer um livro em vez de uma entrevista? Ele estava tipo “ok, faça o que quiser”.

E assim,eu produzi o manuscrito e Chomsky repassou o assunto e fez correções, mudando as coisas e até deu palestras sobre sua primeira visita à Cuba em 2004 – o que é muito interessante porque ele foi à TV nacional da ilha e falou com Ricardo Alarcón, então presidente da Assembleia Nacional.

Como se sabe, ninguém perguntava para Alarcón sobre os prisioneiros políticos ao vivo na TV ao vivo e tiveram um debate que transcorreu sem cortes, sem tópicos proibidos. Eu achei muito interessante. Então, eu finalizei o livro e mandei para a imprensa, mas aí Chomsky teve um derrame e isso foi muito difícil.

Ver a luta dele para se recuperar aos 95 anos é muito difícil. E fui visitá-lo há pouco como o presidente Lula fez. E, sabe, o Lula disse para ele que “você foi uma das referências para a minha vida”. Foi muito, muito comovente.

Voltemos a falar sobre esse novo mundo que começa a se organizar em torno do Brics. As tensões ocidentais aumentam em resposta ao processo de integração ao Sul Global. Como você isso?

Nós publicamos um estudo que considero um dos melhores sobre isso e está disponível em nosso site em português, ele se chama Hiperimperialismo: um novo estágio decadente e perigoso. Eu realmente espero que as pessoas leiam esse estudo na íntegra. Nós demonstramos lá exatamente o que você acabou de dizer, mas com dados.

A parte mais perigosa e assustadora desse estudo, é que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é a grande líder mundial em gastos militares, e ela é um bloco real – enquanto o Sul global não é um bloco, mas um grupo de países com compromissos políticos muito diferentes.

O Sul Global não tem militares. Mesmo a Rússia e a China não têm um tratado militar entre si. E há poucos exemplos desse tipo. Portanto, a grande ameaça militar é a Otan. Porque o que russos e chineses têm entre si é um tratado de cooperação estratégica, para diálogo e para que não haja traição entre eles. Mesmo o tratado recente entre russos e norte-coreanos não se equipara a algo como a Otan.

Assim, a parte mais perigosa da ordem mundial contemporânea é o Norte Global. Não existe multipolaridade. Não gosto completamente da ideia de um mundo multipolar, porque isso sugere que existe igualdade entre o bloco dos Estados Unidos e os outros países do mundo, o que não é verdade.

O bloco real – e terrorista – é o Norte. E então há outros grupos pelo mundo. Portanto, falar em multipolaridade dá às pessoas uma ideia enganosa de que o mundo é de alguma forma plano, enquanto os Estados Unidos e o seu bloco são realmente perigosos.

As diferenças entre os grupos políticos ocidentais desmancharam no ar. Mesmo partidos social-democratas e verdes apresentam, hoje, posições pró-guerra, as quais são radicais até mesmo para a extrema direita. Como superar essa contradição?

Bem, isso é um problema europeu, não é problema meu. Isso é para os europeus resolverem. Na Alemanha, o Partido Verde está mais à direita do que os fascistas. Quer dizer, posso compreender os liberais franceses chateados com a ascensão de Le Pen. Isso é uma coisa terrível.

Mas para o Sul global, não sei se importa se Macron é o presidente ou Marine Le Pen. Eu realmente não sei se isso importa. Então realmente depende de quem você está falando. De quem é o perigo? Macron é bom para o Sul global? Eu não acho.

Não creio que Macron tenha feito alguma coisa para promover a crise da dívida, a crise climática ou a crise da guerra. Ele quer enviar tropas para a Ucrânia. O que os franceses fizeram sobre a Palestina? Sim. Qual é a diferença para Le Pen do ponto de vista do Sul?.

Portanto, vamos deixar os europeus lidar com isso. Por que deveríamos gastar tanta energia tentando pensar nos problemas deles? Eles gastam alguma energia pensando nos problemas do Brasil, de Burkina Faso ou de qualquer outro lugar? Eles não se importam. Os europeus nem sabem onde ficam esses lugares. Então, por que deveríamos gastar tanto perguntando sobre eles?

É como o presidente Mao debatendo com Palmiro Togliatti e os comunista italianos sobre a revolução mundial: os comunistas italianos eram mais europeus do que comunistas no fim das contas.

Como podemos restabelecer um movimento internacional contra a guerra que mobilize os trabalhadores e o povo?

Eu inverteria essa questão, porque o mais importante é como construímos um movimento internacional da classe trabalhadora e camponesa? Porque o resultado do movimento internacional da classe trabalhadora e camponesa será um movimento de paz.

Tomemos, por exemplo, se tentarmos construir um movimento imediatamente pela paz, acabará sendo um movimento de classe média. Porque essas questões são “verdes”, do tipo “vamos salvar as alterações climáticas”. Tudo isso. Se começarmos a nossa política a partir das questões das alterações climáticas, da paz e assim por diante, acabaremos na classe média.

Portanto, a questão principal é como reconstruímos o poder da classe trabalhadora e dos camponeses? Como fazemos isso? Primeiro? E isso é difícil porque à medida que o projecto neoliberal se aprofunda, cada vez mais pessoas nas nossas sociedades trabalham de forma precária e é difícil organizar trabalhadores precários de forma prática. Sim, eles estão aí.

O capitalismo cria formas de emprego que tornam a organização cada vez mais difícil. Existem formas de emprego em que as pessoas trabalham o tempo inteiro. Há formas de contratação em que o contrato é ao minuto, o que é assustador

Então, o segundo problema é que às vezes há lei trabalhista, mas ninguém liga. Mas em muitos países sequer há direito trabalhista. Nesse contexto de precarização, é muito difícil organizar a massa trabalhadora. Portanto, a nossa principal tarefa neste período é construir a confiança e o poder da classe trabalhadora. Essa é uma tarefa primordial da esquerda. E junto disso é que você tem que atrair as pessoas para uma utopia. Você não pode simplesmente ir até as pessoas e dizer: junte-se ao movimento porque sua vida é uma merda.

Você não vai querer a esquerda. A política está fugindo do mundo. Você quer sair da política ou correr em direção a algo, certo? E você não entra no MST só porque não gosta de ficar sem terra. Temos de dizer “participe, porque vamos criar um mundo melhor”. Então você tem que trazer pessoas para isso, não por causa desse tipo de movimento voltado para trás.

Então, na minha opinião, o único jeito de construir um movimento pelo clima e pela paz é construir um movimento de trabalhadores e camponeses. Imagine ir a uma comunidade de trabalhadores e fala sobre parar de comer carne para salvar o mundo. Primeiro, boa parte da classe trabalhadora global não come carne porque não consegue.

Como construímos esse poder camponês da classe trabalhadora? Como construímos uma utopia das massas populares? Se pudéssemos, gostaríamos de construir, tipo, um centro comunitário nas áreas mais pobres onde seus filhos possam aprender a brincar a guitarra. Queremos uma favela onde não haja drogas e tiroteios. Queremos criar um mundo onde as pessoas se reúnam e digam: vamos limpar nossas ruas.

Vamos garantir que nossas ruas estejam limpas. Nós vamos fazer isso por nós mesmos, sabe? E quando começarmos a fazer isso, queremos que o Estado, que talvez seja até certo ponto um Estado amigável, nos dê recursos. Entrevistei uma mulher na Venezuela, em Caracas. Ela era uma mulher negra da classe trabalhadora que mora em uma vizinhança próxima a um grande bairro de classe média, com muitos prédios.

Ela me contou que esse lugar onde eles moram agora era um espaço vazio. Era lixo, foi jogado em bairros de classe média, prédios grandes e bonitos, mas tem muito lixo nessa área. Depois que Chávez venceu as eleições, um grupo formado principalmente por essas mulheres veio e assumiu o controle dessa área. E então esses vizinhos de classe média chamaram a polícia para despejá-las.

Algumas dessas mulheres foram ao governo e disseram: olha, não queremos causar problemas. Tudo o que a gente quer é material de construção, cimento, sabe, uma betoneira, sabe, essa é uma lista de coisas que precisamos e vamos precisar. Não queremos criar nenhum problema que vamos causar.

Na verdade, Chávez autorizou pessoalmente o envio do material. E elas construíram um prédio muito bonito, simples e de vários andares para suas famílias. E agora elas moram nesse bairro. Era apenas um terreno vazio e abandonado. Elas assumiram o controle e foi criado um clima de confiança.

Podemos fazer alguma coisa. Quando perguntei à mulher, o que você acha que vai acontecer se o governo mudar, ela disse, se o governo mudar, as pessoas desses edifícios enviarão escavadeiras para destruir as nossas casas.

É uma guerra de classes. Mas elas estavam confiantes de que lutarão para defender as suas casas. É isso que quero dizer com utopia. Elas agora têm belas casas. Eles têm apartamentos agradáveis. Elas têm um lugar onde podem colocar os filhos juntos. E então elas construíram tudo isso. Isso é tudo. Você tem que construir a confiança das pessoas da classe trabalhadora.

Uma combinação de organização de pessoas para resolver seus problemas e recursos de um Estado amigável. Isso é uma combinação. Hoje você tem milhões de brasileiros morando em favelas. Você precisa melhorar as condições de vida deles. Não é aceitável a situação atual. Ponto final.

Sobre os autores:

HUGO ALBUQUERQUE é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

VIJAY PRASHAD é um historiador e comentarista marxista indiano. Ele é diretor-executivo do Tricontinental: Institute for Social Research, editor-chefe da LeftWord Books e membro sênior não-residente do Chongyang Institute for Financial Studies, Renmin University of China.

GABRIELA BARIZON É tradutora e intérprete em inglês e castelhano, atua com legendagem e traduziu A estrela vermelha brilha sobre a China (Autonomia Literária, 2023).

FONTE: Jacobina

quinta-feira, 18 de julho de 2024

BC: muito além da Selic



Art. 192 (CF). O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.


Ao longo das últimas décadas, a atuação do Banco Central (BC) tem permanecido bastante tempo sob o holofote da imensa maioria da sociedade. Até mesmo a grande imprensa especializada em assuntos econômicos e financeiros não tem como escapar da realidade escandalosa de nosso patamar de taxa de juros oficial. Por mais que os grandes meios de comunicação mantenham relações bastante incestuosas com o universo do financismo, é impossível não tratar da irracionalidade dos níveis de nossa SELIC e mesmo da taxa real de juros, aquela que se obtém por meio da subtração da inflação da taxa nominal.

O fato inegável é que o Brasil tem se mantido ao longo dos anos como um verdadeiro paraíso para o povo das finanças globais. O processo intenso de financeirização e de bancarização de nossa sociedade tem operado como alicerce para o incremento da espoliação que o sistema financeiro promove sobre o conjunto dos demais ramos da economia e das classes sociais. A existência de um fenômeno impressionante de concentração e de oligopolização dos conglomerados que atuam na área deveria provocar também um olhar e uma intervenção mais arguta das instituições estatais encarregadas de tais funções.

É importante lembrar que as funções do BC em nossa sociedade e na economia vão muito além do que a responsabilidade legal pela definição da SELIC. O Comitê de Política Monetária (COPOM) é composto exatamente pelos nove membros que integram a diretoria do banco. Assim, eles se reúnem a cada 45 dias para discutir a conjuntura econômica brasileira e internacional com o intuito de estabelecer os níveis da taxa referencial de juros. No entanto, o BC é o órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro como um todo, além de ser responsável pela condução da política cambial e dos diferentes regimes e sistemas de rédito existente no País.

A exploração do financismo.

Na condição de organismo similar a uma agência reguladora, o banco deveria atuar para evitar distorções no mercado bancário e de crédito, tendo em vista a enorme concentração de poder em mãos de pouquíssimas empresas no setor. Os mastodontes privados que operam no financismo em nossas terras podem ser contados nos dedos das mãos. A eles se somam os bancos públicos federais, que deveriam se comportar enquanto instituições de crédito governamentais e não se orientarem pela lógica de seus concorrentes privados.

O BC não disponibiliza informações mais detalhadas em seu “Relatório da Economia Bancária”. No entanto, na edição relativa ao ano de 2023, o que se pode observar é uma tremenda concentração nos 4 maiores grupos de bancos. Assim, a porção comandada pelo conjunto de Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Bradesco e Itaú representam sempre índices entre 55% e 60% para variáveis relevantes, como total de depósitos totais, ativos totais e volume das operações de crédito. Caso fossem incluídos outros grandes grupos no cálculo, os níveis de concentração ficariam ainda mais evidenciados. No que se refere a lucros anuais, por exemplo, a participação dos 5 maiores grupos no total dos ganhos do sistema foi de 74%.

Ora, sob tais condições, a missão de um órgão regulador e fiscalizador é assegurar condições mínimas de concorrência e de ética no funcionamento dos chamados “agentes econômicos” para evitar super exploração dos mesmos sobre a parte mais fraca da relação. Esse é o caso típico de ocorrência de abuso do poder econômico dos bancos sobre o conjunto dos clientes, sejam eles empresas, famílias ou indivíduos. Porém, historicamente, o BC sempre fez cara de paisagem sobre tal quadro de existência da mais completa assimetria de poder entre as partes envolvidsa na relação econômica e financeira.

Spreads abusivos e lucros exorbitantes.

Uma das evidências mais cristalinas de tal distorção pode ser identificada na prática dos chamados spreads. Trata-se da diferença observada entre as taxas de captação de recursos junto ao público e as taxas de empréstimos praticadas pelos bancos. Nesse quesito o Brasil também ocupa tristemente uma posição de destaque no campeonato mundial da modalidade. E em nenhum momento ao longo de seus quase 60 anos de existência o BC esboçou qualquer iniciativa para controlar essa prática deletéria. O que mais impressiona é a capacidade de acomodação da sociedade brasileira a tais condições, como havia ocorrido com níveis elevados de inflação ou de financeirização. A flagrante condição de anormalidade do sistema sobrevive e com o tempo ela se “naturaliza”, em prejuízo da absoluta maioria que se percebe como dependente dos grandes bancos.

Os gráficos abaixo exibem a média de spreads praticados pelo sistema. O campeão absoluto é o relativo ao cartão de crédito rotativo. Ali as taxas para o período 2022 a 2024 sempre estiverem próximas ou superiores a 400% ao ano. Uma loucura!

Os gráficos abaixo exibem a média de spreads praticados pelo sistema. O campeão absoluto é o relativo ao cartão de crédito rotativo. Ali as taxas para o período 2022 a 2024 sempre estiverem próximas ou superiores a 400% ao ano. Uma loucura!

Em seguida, aparecem os spreads envolvendo as taxas do cheque especial. Aqui também os bancos cobram de seus clientes algo entre 120 % e 140% de juros ao ano.

Finalmente, os diferenciais observados nas operações de crédito pessoal apresentam taxas próximas a 40% ao ano.

Ora, em todas estas modalidades, o BC jamais atuou para impedir tais práticas, que se caracterizam por uma super exploração econômica e financeira. Afinal, esta deveria ser a primeira medida a ser adotada por uma agência reguladora cuja direção não esteja capturada pelos interesses dos conglomerados sobre as quais deveria vigiar e controlar. O mesmo raciocínio poderia ser realizado no que se refere à cobrança de tarifas abusivas por tais empresas.

Assim, o que se percebe é que a agenda da direção do BC deveria incorporar uma série de outros temas relevantes, que vão muito além do estabelecimento do patamar da SELIC. Espera-se que a nomeação do próximo presidente da instituição a partir de dezembro e a composição da direção da mesma com uma maioria de membros nomeados pelo Presidente Lula seja o início de mudança Ou seja, o começo de uma gestão do BC que atenda efetivamente aos desejos e anseios da maioria da população e das empresas que atuam o setor real da economia.
 Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em       Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal no Brasil. Fonte: Iso Sendacz

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Paulo Nogueira Batista Jr: Uma crise fabricada

Foto: Blog do Miro

Por Paulo Nogueira Batista Jr.*

O que provocou a turbulência no mercado financeiro e na mídia nas semanas recentes?

Criou-se uma sensação de “crise”. Os desavisados devem ter pensado que estávamos ou estamos à beira de um abismo. A onda especulativa já arrefeceu, mas vale a pena discutir o que a desencadeou.

Afinal, houve motivos para tal nervosismo nos mercados cambial e financeiro, em especial para a alta do dólar? Creio que sim. Não foram, porém, primordialmente econômicos – e sim políticos.

Os resultados econômicos e sociais do governo Lula estão entre bons e razoáveis. Veja-se, por exemplo, o crescimento do PIB, a inflação, o mercado de trabalho, os indicadores de pobreza, o balanço de pagamentos.

Quanto ao propalado “risco fiscal”, as informações disponíveis não sugerem de forma alguma que o Brasil venha caminhando para um colapso das contas governamentais. Aliás, as expectativas de mercado em relação ao déficit público (primário e total), assim como em relação aos demais indicadores macroeconômicos, praticamente não se mexeram no passado recente.

Menciono dois fatores de ordem principalmente política que ajudam a entender a instabilidade recente no sistema financeiro. E que nos autorizam a dizer, acredito, que a “crise” foi em larga medida fabricada.
As eleições de 2026

Primeiro fator: nos últimos meses, ficou evidente que Lula pretende disputar e será um candidato forte à reeleição em 2026.

A tradicional direita neoliberal, que controla o sistema financeiro e a mídia, não vê isso com bons olhos, para dizer o mínimo.

Vou ser mais claro. Não vamos nos iludir. Boa parte dessa direita – que tem a cara-de-pau de se apresentar como “centro” – nutre ódio a Lula e à centro-esquerda. Senão ódio, desprezo. Senão desprezo, profunda desconfiança e rejeição.

Ela constitui um agrupamento pernicioso, de gente reacionária, mentalmente estreita e profundamente antinacional. O perigo para o Brasil está também nessa gente, e não apenas na ultradireita bolsonarista.

Infelizmente, diga-se de passagem, o governo Lula está infestado de neoliberais, alguns bem militantes, o que explica a sua dificuldade de avançar.

A “Arca de Noé”, montada por Lula em 2022, tem o seu preço – e não é pequeno. Apesar disso, ele tem conseguido significativos resultados econômicos e sociais, o que deixa os adversários ainda mais alarmados.

O presidente da República tem dado muitos sinais de paz e tomado decisões conciliatórias. Perfeitamente compreensível. É um jogo que ele joga bem. Mas com que resultado nesta temporada política? Fica às vezes a sensação de que o seu esforço de conciliação possa estar sendo visto como indício de fraqueza.

Apesar dos esforços de pacificação, a execrável plutocracia local continua militantemente contra o governo, buscando toda e qualquer oportunidade para atacá-lo.

Como se sabe, a direita tradicional tem muito poder – político, financeiro e midiático. Mas sofre de um pequeno problema: não tem votos para vencer eleição presidencial.

Gostaria de viabilizar uma candidatura de “terceira via” para 2026, mas percebe provavelmente que será muito difícil.

Uma opção mais viável para ela seria construir uma “Arca de Noé” pela direita com Tarcísio de Freitas como candidato. A ideia é combinar os votos de Bolsonaro com um candidato mais amplo e aparência um pouco mais “civilizada”.

Os liberais de quinta categoria da direita tradicional não teriam nenhum escrúpulo em se aliar de novo com o bolsonarismo. Os seus porta-vozes mais chinfrins já clamam em público por um “bolsonarismo moderado”.

Portanto, o que se procura, desde logo, é enfraquecer e manietar Lula para que ele chegue desidratado à próxima eleição presidencial – de preferência com cara de terceira via. Um Lula fraco, com jeito de terceira via, poderá ser derrotado.

Ou, no mínimo, forçado a negociar com a direita tradicional, ou parte dela, nova frente ampla que mantenha um eventual Lula 4 nessa mesma condição atual de parcialmente bloqueado e cerceado na sua capacidade de promover mudanças.
A sucessão no Banco Central

Mas há um segundo fator por trás da “crise”. E mais imediato do que 2026. Trata-se da escolha por Lula de quem exercerá a presidência do Banco Central.

Até o final do ano, o presidente da República terá de escolher não só o presidente, como também dois novos diretores para o Banco Central. Os indicados de Lula no Comitê de Política Monetária terão maioria folgada a partir de janeiro de 2025.

Consequência? A turma, ou melhor turba da bufunfa, ficou na espreita e, no momento que julgou adequado, tratou de providenciar uma turbulência econômica, com a ajuda prestimosa de Roberto Campos Neto. Para quê? Para tentar intimidar o presidente da República e o ministro da Fazenda.

A mídia corporativa, em sua maior parte um mero puxadinho da Faria Lima, entrou em campo com alertas dramáticos.

Armínio Fraga, um funcionário do status quo, veio a público ameaçar o presidente da República com um “fiasco político” e uma grave crise caso erre na escolha do novo presidente do BC.

Edmar Bacha, outro funcionário do status quo, disse textualmente: “Lula tem que se comportar”. Veja só, leitor ou leitora, a imensa arrogância dessa gente (estava para escrever “corja”, mas me contive).

Querem mesmo é que Lula indique um deles para o cargo. Alguém tipo Henrique Meirelles, ou o próprio Fraga, ou tipo Ilan Goldfajn, para mencionar apenas alguns nomes do longo rol de fiéis serviçais do capital financeiro. Não sendo isso possível, aceitam que seja indicado alguém cooptável.

Nesse momento, já há quatro indicados por Lula na diretoria do Banco Central. Andam bem mansos, no geral. Nada dizem, nada fazem – até onde se pode perceber. Acredito que estejam envolvidos em um cauteloso movimento tático, esperando o não tão distante janeiro de 2025.

Espero que seja mesmo apenas tático. De janeiro em diante, o jogo tem de mudar. Evidentemente, ninguém vai dar um cavalo-de-pau numa instituição da complexidade do Banco Central. Mas não pode ser mais do mesmo.

O Banco Central tem funções da maior importância – conduz a política monetária, emite moeda, supervisiona e regula o sistema financeiro, integra e secretaria o Conselho Monetário Nacional, administra as reservas internacionais do país, funciona como emprestador de última instância em períodos de crise financeira sistêmica, entre outras.

Não deve, portanto, ser conduzido de forma independente do resto do governo e da política econômica – e alinhado apenas com o lobby financeiro privado.

É importante acertar na escolha do presidente e dos dois novos diretores. O futuro presidente do Banco Central deve ser, na minha modesta opinião, alguém não só com conhecimento e experiência, como também muito próximo do presidente da República.

Assim, ficará mais viável estabelecer a indispensável sintonia entre a política monetária e o resto da política econômica.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.

FONTE: Viomundo

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Comunicadores e Ativistas Digitais, lançam carta após 8º BlogProg em SP


Foto: Guilherme Gandolfi

CARTA DO 8º ENCONTRO NACIONAL DE COMUNICADORES E ATIVISTAS DIGITAIS

Os desafios colocados para os comunicadores e ativistas digitais que lutam por uma mídia mais diversa, plural e democrática no Brasil são duríssimos.

De um lado, a despeito da derrota na eleição presidencial em 2022, a ultradireita e a máquina de desinformação e ódio bolsonarista seguem a todo vapor. De outro, um governo democrático e popular que contrasta com uma ampla maioria reacionária e mercenária no Congresso, impondo enormes barreiras para emplacar o projeto vitorioso nas urnas.

No meio do caminho, a agenda da luta pela democratização da comunicação, que parece estancada pela famigerada conjuntura. O que fazer, então? Todas as respostas convergem em três tarefas imprescindíveis: organização, mobilização e pressão.

Nós, comunicadores populares, jornalistas, pesquisadores, estudantes e ativistas reunidos no o 8º Encontro Nacional de Comunicadores e Ativistas Digitais nos dias 5 e 6 de julho, em São Paulo, assumimos a responsabilidade de definir e executar estratégias de enfrentamento ao esgoto bolsonarista, às contradições do governo e de ação conjunta na luta por uma comunicação mais democrática.

Para alcançar esses horizontes, estabelecemos os seguinte eixos como prioritários para o próximo período:

A luta pelo fortalecimento das mídias independentes, comunitárias, periféricas e contra-hegemônicas em geral, que deve ser intensificada em todas as esferas – não apenas no Executivo, mas também em âmbito parlamentar, seja estadual ou municipal, ocupando os espaços de participação social, pressionando as bancadas progressistas e fortalecendo instrumentos e campanhas que visam construir políticas públicas de financiamento para o conjunto dessas mídias.

Fortalecimento da Comunicação Pública, com mais investimentos e ousadia na condução das iniciativas já existentes, com destaque à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), para que possa cumprir seu papel com os devidos arrojo, qualidade e abrangência necessários para disputar audiência oferecendo uma programação distinta à dos meios comerciais. Um caminho pode ser a construção de uma ampla rede de emissoras de rádio e de televisão que ofereçam espaço, através de editais, para conteúdos produzidos pelas mídias independentes, comunitárias, periféricas e contra-hegemônicas em geral;

Atuação e repercussão da luta pela regulação das plataformas digitais, as chamadas “big techs”, fundamentais para o combate ao ódio e à desinformação a partir do estabelecimento regras e limites ao poder dessas corporações transnacionais ao determinar responsabilidades e transparência quanto às suas políticas de monetização e de algoritmos; o mesmo se aplica à regulação da inteligência artificial, que necessita critérios claros para os rumos de sua utilização e desenvolvimento no país. Para além da regulação, também urge pressionar os governos em todas as esferas para a concepção e o desenvolvimento de plataformas próprias, que reduzam a dependência tecnológica das corporações transnacionais e protejam a soberania digital brasileira. Também sugere-se aproximação com o Observatório do Fediverso, um ambiente com notícias, tutoriais, e curadoria de instâncias para estimular a cultura de uso das tecnologias federadas no Brasil;

Fortalecer iniciativas, políticas públicas e campanhas de combate à desinformação

A partir do jornalismo, do midiativismo e da comunicação popular, amplificar a luta por avanços no governo, por mais democracia e por mais desenvolvimento com soberania e justiça social

Acompanhar a proposta de criação de uma Rede de Comunicação Popular, tal como está sendo discutido pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a partir de proposta apresentada em sua 25ª Plenária Nacional, realizada de 28 a 30 de junho de 2024. A iniciativa visa construir unidade entre o maior número possível de mídias independentes, comunitárias, periféricas e contra-hegemônicas em geral, a fim de formar uma grade de programas em áudio e vídeo com produção de lavra própria. A proposta dialoga com outra emenda, apresentada pelo Portal Desacato, sugerindo a criação de um noticiário unificado e nacional regular, através da web e com repetição simultânea nos canais e plataformas dos veículos participantes, para apresentar o jornalismo independente de cada estado em nível nacional, destacando suas identidades e culturas, com uma curadoria semanal das melhores notícias e entrevistas de cada coletivo jornalístico;

Aprofundar a discussão sobre a realização da II Conferência Nacional de Comunicação (Confecom)

Articular e estimular a organização da juventude nos espaços de luta pela democratização da comunicação

Realizar encontro, no âmbito do Barão de Itararé, protagonizado pela juventude para debater temas urgentes de seu interesse em intersecção com a luta pela democratização da comunicação

Pressionar pela implementação imediata dos Canais da Cidadania

Os tempos mudaram bastante desde o primeiro Encontro de Blogueiros Progressistas, em 2010. A tecnologia avançou sobre a comunicação e o incipiente movimento dos “blogueiros sujos” ajudou a construir um ecossistema muito mais plural que vai das mídias independentes, seus portais e canais, aos influencers digitais e suas novas formas de comunicar, em plena transformação.

O conjunto desses comunicadores e ativistas digitais tem o dever de buscar unidade na diversidade, respeitando as diferenças de porte, região e linha editorial para que a prática de somar forças e multiplicar esforços nas lutas comuns sejam uma estratégia permanente. Só mobilizados, organizados e solidários uns com os outros seremos capazes de incidir em uma das mais duras batalhas já enfrentadas pelo campo progressista, que agora não é só mais para democratizar a comunicação, mas sim construir uma comunicação e um país que dêem conta de estrangular, de uma vez por todas, a serpente fascista.

São Paulo, 6 de julho de 2024

Saiba mais sobre o encontro aqui

A Reforma Tributária entre o desejável e o possível

Imagem:FENAFISCO

Por Luciano Siqueira

A luta política é assim: nossas forças se tencionam em função do objetivo maior e ao mesmo tempo praticam a flexibilidade tática conforme a correlação de forças a cada fase do processo.

A reforma tributária, ora em tramitação no Congresso Nacional, é um exemplo disso.

Do ponto de vista do PCdoB – conforme estabelecido em seu Programa Socialista para o Brasil – o ideal seria uma “reforma tributária progressiva que tribute mais os detentores de fortunas riquezas e rendas elevadas. Especial tributação sobre a especulação e o rentismo. Desoneração da produção e do trabalho. Tributação direcionada para redução das desigualdades regionais e sociais. Fim dos privilégios socioeconômicos dos setores dominantes, hoje menos tributados que a maioria assalariada.”

Nesses termos, uma reforma avançada que, ao lado de outras tantas igualmente estruturantes da sociedade brasileira num padrão democrático, soberano e progressista — a reforma urbana, a agrária, a dos meios de comunicação, etc. — proporcionará substancial elevação do padrão de vida material e espiritual do povo brasileiro.

Isto mediante prolongada luta no curso da qual a classe trabalhadora e as demais camadas populares terão alcançado nível de consciência política e de organização avançado, a ponto de vislumbrarem a alternativa socialista

Hoje, contudo, sob o novo governo Lula damos os primeiros passos em penosa transição a um desejado novo ciclo de transformações progressistas sob a consigna da reconstrução nacional.

E tudo o que depende de maioria parlamentar encontra enormes dificuldades na Câmara e no Senado, onde quase 4/5 dos deputados e senadores se filiam a correntes de centro e centro-direita, com as quais o governo tem que negociar passo a passo.

Desse modo, a presente reforma tributária na essência “racionaliza” e simplifica o sistema, que no Brasil é um dos mais complicados do mundo, e mais do que isso apenas admite uma ou outra concessão, como a desoneração dos produtos componentes da cesta básica.

Assim mesmo há análises, como a formulada por professores da Universidade Federal de Minas Gerais no documento “Como a devolução dos impostos pode ajudar a reduzir a desigualdade no Brasil”, que sugerem, através da atual reforma, ser possível elevar em mais de 20% a capacidade de consumo de famílias com renda mensal de até um salário mínimo.

Tomara.

Mais do que isso, demandaria amplo e poderoso movimento de massas pressionando o Congresso, variável ainda ausente na cena política do país.

FONTE: Blog do Renato

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Governo Bolsonaro bancou comunidades terapêuticas sem médicos e profissionais de saúde mental

Foto: Redes Sociais

Ao menos 288 comunidades terapêuticas receberam recursos do governo federal entre 2019 e 2022, período que marca a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, para a execução de projetos de recuperação de dependentes de álcool e demais drogas em todo o país. Do total, porém, mais de 14% não previam a contratação de médicos, e outros 28% não citavam a inclusão de psicólogos ou demais profissionais de saúde mental em seus quadros.

Dados oficiais indicam que havia um déficit ainda maior de enfermeiros e profissionais de enfermagem, ausentes em 67% dos projetos aprovados, na época, pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Profissionais de educação, como psicopedagogos, estiveram presentes em apenas 17,65% das propostas, e apenas 36,33% incluíram a contratação de assistentes sociais.

Os dados foram levantados pela Frente Parlamentar da Saúde Mental, que atua na Câmara dos Deputados, com base nas respostas do governo a um requerimento de informação de autoria da sua presidente, Tabata Amaral (PSB-SP), e do coordenador de fiscalização da bancada, deputado Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ). Os resultados, apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, foram compilados em uma plataforma pública, com a íntegra dos contratos e termos de colaboração.

O requerimento solicitou informações sobre os projetos aprovados desde 2017, mas os contratos anteriores ao ano de 2019 foram perdidos, e um outro contrato não estava em formato compatível com as ferramentas de cruzamento de dados. Com isso, restam ainda 47 projetos de contratação de comunidades terapêuticas, aprovados na gestão de Michel Temer, sem informações a respeito da formação de suas equipes técnicas.

Comunidades terapêuticas

Comunidades terapêuticas são cerca de duas mil organizações privadas sem fins lucrativos, estabelecidas espalhadas por todo o país com o objetivo de reinserir dependentes químicos à sociedade. Elas não fazem parte do Sistema Único de Saúde (SUS), e quase sempre a operação é coordenada por entidades de caráter religioso: de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 82% delas possuem orientação religiosa, sendo 47% evangélicas e 27% católicas.

Apesar de não fazerem parte do SUS ou mesmo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), as comunidades terapêuticas passaram a integrar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) em 2019, tanto por iniciativa de decreto do governo Bolsonaro quanto de uma lei aprovada no mesmo ano. Com isso, abriu-se uma janela para facilitar a contratação dessas empresas pela União, facilitando repasses públicos.

Apesar de contarem com forte presença dentro do Congresso Nacional, poderem receber recursos públicos e contarem com proteções tributárias, as comunidades terapêuticas têm com pouca fiscalização: não há um órgão específico destinado para isso, com a atividade dispersa entre agências de fiscalização sanitária, conselhos profissionais e ministérios públicos de cada nível da federação. O próprio Ipea, vinculado ao Ministério do Planejamento, possui poucos estudos a respeito de sua atuação, com o último levantamento datado de 2017.

Paralelamente, essas instituições acumulam denúncias de violações de direitos humanos.

Em 2017, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia, o Ministério Público Federal e outros órgãos de fiscalização pública divulgaram um relatório com os dados de uma inspeção realizada em 28 comunidades terapêuticas em 10 diferentes estados, incluindo toda a região Sudeste. Em 16 unidades, foram identificadas violações como privação de sono, violência física a internos, uso irregular de amarras, supressão de alimentação como instrumento punitivo e confinamento disciplinar.

Também há pouca transparência a respeito dos repasses públicos às comunidades terapêuticas, que podem vir não apenas de qualquer nível do Poder Executivo, mas também de emendas parlamentares. Apenas entre 2017 e 2020, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, rastreou R$ 300 milhões em repasses da União às organizações, e outros R$ 260 milhões em emendas, repasses estaduais e municipais.

Sem critério clínico

Coautor do requerimento da Frente Parlamentar da Saúde Mental e principal articulador da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, o deputado Pastor Henrique Vieira considerou que a resposta do Ministério do Desenvolvimento Social sobre os repasses a projetos com limitações na equipe técnica “comprova que boa parte destas comunidades não tem qualquer critério clínico ou condições de receber recursos públicos para cuidar das pessoas que estão desenvolvendo dependência de álcool e outras drogas”.

Crítico de longo prazo a atuação das comunidades terapêuticas, Vieira ressalta que a frequência de projetos aprovados com deficiência de médicos, psicoterapetas, enfermeiros e psicopedagogos deixa clara a necessidade não apenas de se aumentar a fiscalização, mas também de interromper os repasses públicos enquanto não forem adotados critérios mais rigorosos de aprovação em editais.

“O financiamento público deve ir para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), para as residências terapêuticas, para os centros de convivência, para os mecanismos próprios do SUS. Nas comunidades terapêuticas, a realidade é de falta de médicos e de psicólogos, além de incontáveis denúncias de internação compulsória como pena alternativa ou mesmo privação de liberdade”, argumentou o deputado.

Prática proibida

Além do déficit de profissionais clínicos para os projetos de reabilitação, 37% dos contratos preveem a adoção da laborterapia, que consiste no uso da prática laboral como instrumento de tratamento de pacientes. Essa prática, segundo o Conselho Federal de Psicologia, é condenada desde 2001 nos princípios da reforma psiquiátrica.

“Isso é um terreno fértil para o trabalho forçado e até mesmo análogo à escravidão. Se você não tem controle, não tem base científica, não tem fiscalização, não tem parâmetros clínicos ou mesmo equipes multiprofissionais, o que resta? Resta um espaço vazio para todo tipo de arbitrariedade, tudo isso recebendo financiamento público”, alertou Henrique Vieira.

O deputado também chama atenção para elevada parcela de mais de 95% de projetos que incluem “atividades espirituais” entre seus métodos de tratamento. Ele teme que, na prática, se trate de participação forçada em cultos da entidade religiosa responsável pelas respectivas comunidades. Ele próprio testemunhou um caso do tipo.

“Eu visitei uma comunidade terapêutica em Goiás, junto ao Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, e o que identificamos foi exatamente uma lógica religiosa sendo imposta, os internos não podiam sequer assistir à Globo, só podiam assistir à Record. Era bizarro”, relatou.

Henrique Vieira não descarta a possibilidade de se adotar instrumentos ligados à espiritualidade do paciente como parte dos instrumentos de tratamento à dependência química. “Mas isso deve acontecer conforme a liberdade consciente do indivíduo, com base em sua confissão pessoal, jamais como mecanismo impositivo e obrigatório”, defendeu.

Repasses interrompidos

Na resposta ao requerimento dos deputados, além de fornecer os contratos fechados com comunidades terapêuticas entre 2019 e 2022, o Ministério do Desenvolvimento Social ressaltou que o governo federal não realizou mais repasses para a contratação das entidades de acolhimento em 2023. O Congresso em Foco acionou a assessoria de imprensa do órgão questionando se a interrupção se manteve em 2024, bem como quais foram os critérios clínicos adotados para os contratos dos anos anteriores. Até o momento, não houve resposta.

Mesmo se mantida a interrupção pela atual gestão, Henrique Vieira teme que o problema dos repasses públicos às comunidades terapêuticas ainda não esteja plenamente resolvido. “Eles tem um grande lobby dentro do Congresso Nacional”, relembrou. Essas entidades contam inclusive com uma frente parlamentar própria para a defesa de seus interesses na Câmara.

O deputado ainda pretende, por iniciativa individual, apresentar os dados colhidos no relatório da Frente Parlamentar da Saúde Mental ao Ministério Público Federal.

O Congresso em Foco também questionou o assessor de comunicação do ex-presidente Jair Bolsonaro, Fabio Wajngarten, sobre se tais repasses foram de conhecimento do antigo chefe de Estado e de seus ministros durante sua gestão. Até o momento, não houve resposta.

AUTORIA DA MATÉRIA

LUCAS NEIVA Repórter. Jornalista formado pelo UniCeub, foi repórter da edição impressa do Jornal de Brasília, onde atuou na editoria de Cidades.