Foto de José Eduardo Bernardes / Brasil de Fato |
O historiador indiano comunista Vijay Prashad veio ao Brasil e falou com exclusividade à Jacobina sobre um novo mundo possível, no qual o horizonte de mudanças radicais estejam junto de ações práticas para enfrentar a segunda onda da extrema direita mundial, com foco nos de baixo e no Sul Global.
No novo Armazém do Campo, situado na região central de São Paulo, entre produtos de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), seu café e a livraria da editora Expressão Popular, encontramos o historiador, jornalista e militante comunista indiano Vijay Prashad.
Dos mais ativos e prolíficos intelectuais contemporâneos, Prashad veio ao Brasil para participar de debates e seminários, mas também para visitar seu amigo e colaborador intelectual Noam Chomsky, que se recupera de um acidente vascular cerebral em São Paulo – além de encontrar o presidente Lula.
Focado no anticolonialismo, nas lutas dos povos do Sul Global e na transformação socialista da sociedade – mas olhando do ponto de vista dos debaixo –, Prashad fala, nesta conversa exclusiva com a Jacobina, sobre as relações entre os países do BRICS, a distância entre os povos brasileiro e indiano, o avanço da extrema direita no mundo, a hegemonia do neoliberalismo e neofascismo nos últimos tempos, mas também a necessidade da esquerda construir sua própria utopia para oferecer um horizonte às pessoas comuns.
O seu país, a Índia, é o mais distante do Brasil entre os membros fundadores do BRICS. Isso é curioso, pois a Índia é uma sociedade com muitas semelhanças com o Brasil. Como podemos mudar isso?
Bem, isso é uma questão interessante. Como podemos nos aproximar? Mas vamos pensar em diferentes níveis. Os nossos governos já são bem próximos. O que aproximou os governos indiano e brasileiro? Quando o Brasil buscava quebrar as patentes de medicamentos das grandes farmacêuticas, principalmente para pacientes com Aids, ele fez acordos com a Índia e a África do Sul. Então, no nível governamental, Brasil e Índia estão próximos, se entendem como complementares.
Mas em nível comercial não, as trocas entre Brasil e Índia são muito pequenas. Não é difícil entender o porquê disso. A Índia não é uma grande importadora de commodities brasileiras. Se você olhar para todos os grandes países da Ásia, particularmente a China, você verá que eles não importam muitos bens com valor agregado do Brasil: eles importam commodities primárias como a soja, por exemplo. Como a Índia não é uma grande importadora de commodities, logo ela não é uma grande parceira comercial do Brasil.
O Brasil é até certo ponto, o industrializado, mas os seus principais produtos de exportação não são os produtos que a Índia irá comprar. Teríamos que ver o que acontece quando o Brasil se reindustrializar. A Índia também não pode comprar energia do Brasil por conta da distância, e ela pode comprar energia muito mais barata dos seus vizinhos. Então, em termos de comércio, eu não vejo como isso poderia melhorar imediatamente.
Mas brasileiros e indianos têm que se conhecer. Os brasileiros não conhecem muito bem a Índia. Os indianos não conhecem muito bem os brasileiros. Temos níveis muito baixos de interação cultural, e eu me refiro aqui sobre a necessidade de compreensão recíproca das diferentes culturas.
Eu acho importante pensar em coisas como existir um estudo da Índia no Brasil e vice-versa. A criação de departamentos nas universidades brasileiras especializadas na Índia, outros especializados na Índia sobre o Brasil. Ou trocas jornalísticas. Nos últimos dez anos, a única grande notícia sobre o Brasil que chegou à Índia foi a prisão de Lula. Isso foi tratado como um assunto muito sério porque Lula é provavelmente mais conhecido, em certo sentido, entre a intelectualidade do que qualquer outra coisa no Brasil. Lula é o principal produto de exportação cultural do Brasil.
A única outra coisa que se sabe na Índia sobre o Brasil é o futebol. Nós, os indianos, somos loucos por futebol. E há aldeias e cidades na Índia onde uma parte torce pela Argentina e outra parte pelo Brasil. Pintam suas casas com a cor da Argentina ou do Brasil. As pessoas se dividem nessa rivalidade durante a Copa do Mundo. Quando você vai a um lugar como a Índia, as principais exportações culturais são futebol e Lula.
Se eu perguntar o que se sabe da Índia no Brasil, eu diria que é um conhecimento de baixo nível, talvez comida indiana. Eu já viajei muito pelo Brasil. Não vejo muita comida indiana. Sabe o que falta? Filmes indianos, música indiana, povo indiano. Há tão poucos indianos que viajam ao Brasil como turistas, embora mais brasileiros viajam para a Índia a turismo. Por quê? Para ioga. Há uma grande corrente de ioga como os brasileiros que vão para a Índia.
Não basta apenas que os governos interajam, porque isso está longe das massas. As pessoas precisam se conhecer. E vejamos, um dos pontos fracos do projeto BRICS é a falta de foco no aumento do contato entre pessoas desse bloco. Só para dar um exemplo super bobo, obter um visto entre a maioria dos países do bloco é difícil. Qual é o sentido de permitir que o capital flua, sem muita regulamentação, entre os países do BRICS, mas as pessoas não podem viajar?
Desde 2009, o BRICS negligenciou a colocação de recursos no contato entre as pessoas. Pensemos em programas de intercâmbio de estudantes. Por que o BRICS não pode financiá-los? Você pega estudantes brasileiros e os manda para a Índia por um semestre. Faz o mesmo com músicos, dançarinos etc. Imagine centenas de estudantes que poderiam sair da Bahia para passar três meses em uma escola indiana. Dançarinos fazendo projetos colaborativos. Você ficaria feliz em ficar na Índia por três meses, mas teria crianças indianas em sua casa. Uma troca direta financiada pelo projeto do BRICS.
Um último exemplo: quando aconteceu a eleição indiana mais recente, havia um único jornalista indiano no Brasil falando sobre a disputa, Shobhan Saxena, que é meu amigo, fala português e mora em São Paulo. Um único jornalista. Na Índia, eu sou o único jornalista que escreve na mídia do meu país sobre o Brasil. Isso é embaraçoso.
Portanto, a questão de vocês é uma ótima pergunta, mas não quero que a resposta fique apenas no nível do governo e do comércio. Eu diria que é muito importante para nós, como escritores e pensadores, gerar um entendimento mútuo entre nossas culturas.
Temos essa grande variedade de forças na Frente Ampla que governa o Brasil, e temos também muitas contradições. Na Índia, tentaram fazer o mesmo contra Narendra Modi. Como se fosse uma tática universal contra a extrema direita. Como você vê isso?
Eu considero que estamos em um período em que a classe média está dominando a ideologia política. Seja no Brasil ou na Índia, a classe média é o grupo que fornece a visão de mundo cultural dominante. Mesmo entre meus amigos, se eu disser que acredito no socialismo, eles vão olhar para mim e vão pensar “tudo bem, é interessante que ele acredite nisso, mas eu acredito no sistema, eu acredito no aeroporto, eu acredito na rodovia ou no carro novo que posso tentar comprar”.
A orientação geral é de que a sociedade seja definida pelas metas da classe média. É uma compreensão que se fundamenta no que a classe média sente que o capitalismo lhes proporciona. Uma sensibilidade pós-capitalista ou anticapitalista não define a classe média, seja no Brasil ou na Índia, pois ela ainda acredita na capacidade do capitalismo prover coisas. Isso tem um enorme impacto sobre os trabalhadores e os camponeses.
O trabalhador diz “não tenho dinheiro para ir ao shopping, mas eu quero ir a um deles”. Isso é melhor do que o socialismo, nessa visão, uma vez que segunda ela o socialismo seria a ausência de shoppings. Nesse contexto, não conseguimos definir o socialismo como “todo mundo pode ir aos shoppings”. Por quê? Porque estamos enredados pelo modelo. Isso é parte do nosso problema. A orientação geral do neoliberalismo está fortemente enraizada na classe média em todos os países.
Quando as pessoas dizem que o neoliberalismo está acabado, elas estão erradas. Apenas algumas políticas neoliberais são difíceis de implementar como a austeridade, mas isso não muda o fato que as aspirações da classe média sejam neoliberais.
As pessoas querem educação privada para as crianças e jovens, segurança etc. Portanto, o neoliberalismo se tornou uma concepção de vida comum. Agora, por que esse neofascismo apareceu? É uma questão complexa. Primeiramente, eu diria, porque o neoliberalismo é difícil de implementar.
Uma agenda neofascista mais dura não fala sobre austeridade, ela fala contra os imigrantes, os homossexuais etc. Ela fala sobre o crime e assim por diante. Os neofascistas não dizem que são contra o neoliberalismo, eles chegam e mudam de assunto. Sobre o que Bolsonaro fala? Homossexualidade, criminalidade. O que repete Bukele em El Salvador? Criminalidade. As massas não rejeitam, a princípio, o envio de policiais armados para esmagar criminosos.
O que Bukele está fazendo em El Salvador, os brasileiros têm feito, mesmo sob Lula, isto é, mandar a polícia para a favela com armaduras como as do Robocop para esmagar as pessoas – e a classe média abaixa a cabeça, pois sente que o crime é um obstáculo.
A homossexualidade também aparece como um obstáculo para a aproveitarmos nossa vida neoliberal. Surgem pensamentos como “e se meu filho vira homossexual?”, isso impacta negativamente a vida neoliberal. Os neofascistas aparecem porque os neoliberais não conseguem implementar uma política neoliberal.
Um neofascista pode chegar e dizer: “vote em mim, eu vou deixar você seguro, vou garantir que sua família esteja segura, inclusive em termos de sexualidade, e que sua comunidade esteja protegida de criminosos, imigrantes, drogas, tudo isso”. No fim, não é diferente do neoliberalismo, porque as pessoas ainda querem que a família e a comunidade sejam seguras e privadas.
Não conseguimos mudar essa aspiração. Você pode vencer como esquerda se o povo aspirar à eliminação das realidades neoliberais. O povo não acredita no socialismo. Então, é preciso defender as aspirações neoliberais. Imagine o quão horrível é a nossa política. Temos que dizer às pessoas que esse caminho não permitirá que elas sejam felizes.
Mas na verdade não estamos oferecendo uma proposta de felicidade. Nós nos tornamos a tendência política do não. Isso é um grande problema: “não faça isso, não faça aquilo, parem parem os neoliberais etc”. Nós não oferecemos uma utopia e essa é a limitação imediata da esquerda. A queda da União Soviética feriu a confiança de provermos uma utopia. Nós temos que voltar a oferecer propostas desse tipo.
Temos de voltar e apresentar propostas utópicas para mudar coisas como, por exemplo, “olhem para os chineses, eles aboliram a pobreza” e as pessoas dizem “ah, você está apenas fazendo propaganda chinesa”. Sim, mas eles aboliram a pobreza e você pode fazer isso e eles fizeram isso de forma diferente do que Lula fez, porque ele reduziu a pobreza ao fornecer transferências de dinheiro.
Os chineses, na verdade, aboliram a pobreza mudando as relações produtivas. São dois modos diferentes. A via chinesa é uma abordagem realmente transformadora. Sim, são dois caminhos diferentes, mas não estamos confiantes o suficiente para dizer que existe uma utopia que podemos oferecer às pessoas. A menos que falemos isso, seguiremos como o partido do não.
Então quando se diz, que os neofascistas, vassalos neoliberais, são mais utópicos do que nós. Porque os neofascistas estão prometendo a mesma utopia que o neoliberalismo: “Você terá uma casa, estará segura, terá sua comunidade, terá sua casa, seu carro, sua aposentadoria” – essa é a utopia neoliberal. Eles, na verdade, compartilham a mesma utopia. E os neoliberais dizem que vão levar você até lá por meio da destruição do Estado – seja Milei ou os neofascistas.
Entre todos eles, Milei, Bukele, Bolsonaro, Modi, todos eles se interseccionam em Bolsonaro, pois ela é a unidade dessas duas posições, neofascista e neoliberal, um “vamos destruir o Estado e oferecer uma utopia”. Meu ponto é onde está a utopia? Você não consegue ganhar as pessoas amedrontando elas. Você não pode construir uma política baseada no medo. A política de esquerda tem de ser baseada no amor.
E aqui, nós realmente vencemos Bolsonaro? Lula venceu a eleição, mas nessa frente ampla cheia de contradições antagônicas.
A Frente Ampla não venceu a eleição. Lula venceu a eleição. Lula é o fenômeno. Se fosse outra pessoa, ela teria perdido. Lula venceu a eleição, cara. Haddad é um grande cara, um homem brilhante, mas ele não é um fenômeno como Lula.
Agora, os neoliberais e neofascistas perderam no Brasil? Eu acho que não. Foi uma vitória tática conduzida por Lula. Mas olhe o inferno da Câmara dos Deputados e a minoria esquerdista em Brasília. Então essas alianças são úteis, se você obteve uma vitória momentânea, obviamente.
A questão é estratégica. Para que serve uma vitória presidencial? Isso avança no quê? Na minha opinião, a presidência deve ser usada para avançar com a ideia que nós temos de utopia. Estamos no governo, podemos abolir a pobreza. Podemos colocar o dinheiro na mão do povo e promover o consumo. Colocar os jovens na universidade no futuro.
No Nepal, eles fizeram uma campanha entusiasmada de massas para atrair os jovens, falando com eles que até você pode ir para a universidade. Agora, a esquerda sectária dirá, uma pessoa indo para a faculdade, dificilmente é grande coisa, você não tem ideia se não vem de uma família pobre, você não tem ideia do que é uma família pobre…
Uma pessoa ir à universidade muda toda a cultura de uma família. Todo mundo então sente que pode conseguir algo, com os jovens indo à universidade. Um governo de esquerda não resolverá todos os problemas. Nós temos que usar ele para criar no povo confiança nas nossas utopias. Acho que o que muitas vezes acontece é que os governos chegam ao poder e lidamos com o governo burocraticamente, não politicamente.
Mas não devemos chegar ao poder para ser burocráticos. É preciso chegar ao poder para aumentar a confiança da população e dizer que a utopia de esquerda é melhor que a neoliberal. Você tem que começar a provar que com vitórias práticas, coisas práticas, se melhora o padrão de vida das pessoas em uma cidade como São Paulo, tentamos até mesmo eliminar totalmente a falta de moradia, que é no mínimo embaraçosa.
A principal tarefa de um governo não é equilibrar o orçamento. Os neoliberais promovem sua utopia ao mesmo tempo que acusam o socialismo de ser uma espécie de utopia que, no entanto, não funcionou quando teve uma chance. E então estamos enfrentando isso. Mas por que estamos frustrados com isso?
Porque o fato é que a utopia funciona. A utopia deles funciona porque ela não é sobre a realização. A utopia deles é sempre sobre uma questão de competição. Então diriam que seu filho pode se tornar um grande sucesso no empreendedorismo e ser melhor que os filhos dos outros. A utopia deles tem dentro de si o fracasso de seus filhos, porque é um mundo de vitórias e derrotas.
Então, na verdade, a utopia neoliberal nunca pode falhar. Se meus filhos não conseguirem, o problema é dos meus filhos. Sim, eles são preguiçosos. Eles andam com os amigos errados. Todos aqueles antigos dramas familiares sobre os filhos entraram nessa “utopia”.
A nossa utopia diz que o fracasso não é possível. O que significa que você não deve ser um fracasso em uma sociedade socialista. Você nunca se sentirá um fracasso. Mas numa utopia neoliberal, ser um fracasso é possível, pois meus filhos têm de derrotar os filhos de todos os outros.
Mas na nossa utopia, esperamos que todos tenham confiança e levem uma vida boa. Portanto, a utopia pode falhar. Só que a utopia neoliberal está estruturada de uma forma tão inteligente que ela não falha, mas os indivíduos falham.
Chomsky vive. Conta pra gente sobre sua parceria intelectual com ele, incluindo o livro sobre Cuba.
Chomsky é um querido amigo e tem um grande senso de humor. Não é apenas o fenômeno Noam Chomsky, mas também uma extraordinária pessoa. Um grande intelectual crítico. Ele escreveu sobre a falência dos intelectuais diante dos regimes de horror no mundo. Esse ensaio é brilhante e ele escreveu isso nos anos 1960, antes do meu nascimento.
Somos amigos há décadas e há seis ou sete anos um editor me perguntou se eu não queria entrevistar Chomsky sobre as guerras dos Estados Unidos. E eu achei uma boa ideia. Despendemos horas conversando e eu fiz várias questões, que geraram A retirada, um livro já traduzido para o português e é bem popular. Nós temos escrito coisas juntos desde então. Publicamos manifestos políticos como contra o ataque ao MST.
Foi uma experiência muito divertida – porque pude passar todo esse tempo e ouvi-lo falar sobre as coisas. E ele fala de memória. Ele não olha para nada. Ele cita coisas de memória. Então eu pensei que era simplesmente incrível. E o livro é realmente bom porque é um resumo da nossa crítica ao imperialismo dos Estados Unidos.
Obviamente, Noam Chomsky e eu não viemos da mesma tradição política. Ele é anarquista. Eu sou marxista, acredito no comunismo. Temos algumas divergências. Não concordamos com a história da União Soviética e outras questões.
Mas meu Deus, se concordássemos com tudo, seria chato. Concordamos em 99% das coisas. E então quando fizemos aquele livro e eu terminei o manuscrito, enviei para ele, ele fez pequenos ajustes, mas ficou muito feliz. Depois entramos. Depois levei o livro comigo para Cuba.
Peguei a versão em castelhano e visitei Silvio Rodriguez, o cantor. Sim. E eu sei que Silvio é um grande fã de Noam Chomsky. Então fui à casa dele e lhe dei um exemplar do livro, e o Silvio me deu um livro grande que ele tinha acabado de escrever sobre música cubana para eu conhecer.
Então, eu indaguei a Chomsky que ele nunca escreveu nada sobre Cuba. Por que não fazemos algo em Cuba? Foi tipo, ok, vamos lá. Então passamos horas e horas e horas. Quer dizer, não sei quantas horas ficamos apenas conversando, na verdade.
Levamos isso não como uma entrevista, mas como uma conversa. E então ele falava e me perguntava e eu falava. E estive lá recentemente na Baía dos Porcos. Então eu estava descrevendo lá para ele, que nunca esteve na Baía. Então ele ficou interessado em saber como é a Baía dos Porcos.
Muito do nosso relacionamento nos últimos 20 anos tem sido eu contando a ele onde fui – como se fosse um experimento – e ele me contando que está lendo sobre o lugar. Na verdade, ele menciona isso em A retirada.
De qualquer forma, depois que recebi a transcrição dele, percebi que não podia ser um livro de entrevista porque estava uma bagunça. Então liguei para ele e disse: posso pegar um texto e fazer um livro em vez de uma entrevista? Ele estava tipo “ok, faça o que quiser”.
E assim,eu produzi o manuscrito e Chomsky repassou o assunto e fez correções, mudando as coisas e até deu palestras sobre sua primeira visita à Cuba em 2004 – o que é muito interessante porque ele foi à TV nacional da ilha e falou com Ricardo Alarcón, então presidente da Assembleia Nacional.
Como se sabe, ninguém perguntava para Alarcón sobre os prisioneiros políticos ao vivo na TV ao vivo e tiveram um debate que transcorreu sem cortes, sem tópicos proibidos. Eu achei muito interessante. Então, eu finalizei o livro e mandei para a imprensa, mas aí Chomsky teve um derrame e isso foi muito difícil.
Ver a luta dele para se recuperar aos 95 anos é muito difícil. E fui visitá-lo há pouco como o presidente Lula fez. E, sabe, o Lula disse para ele que “você foi uma das referências para a minha vida”. Foi muito, muito comovente.
Voltemos a falar sobre esse novo mundo que começa a se organizar em torno do Brics. As tensões ocidentais aumentam em resposta ao processo de integração ao Sul Global. Como você isso?
Nós publicamos um estudo que considero um dos melhores sobre isso e está disponível em nosso site em português, ele se chama Hiperimperialismo: um novo estágio decadente e perigoso. Eu realmente espero que as pessoas leiam esse estudo na íntegra. Nós demonstramos lá exatamente o que você acabou de dizer, mas com dados.
A parte mais perigosa e assustadora desse estudo, é que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é a grande líder mundial em gastos militares, e ela é um bloco real – enquanto o Sul global não é um bloco, mas um grupo de países com compromissos políticos muito diferentes.
O Sul Global não tem militares. Mesmo a Rússia e a China não têm um tratado militar entre si. E há poucos exemplos desse tipo. Portanto, a grande ameaça militar é a Otan. Porque o que russos e chineses têm entre si é um tratado de cooperação estratégica, para diálogo e para que não haja traição entre eles. Mesmo o tratado recente entre russos e norte-coreanos não se equipara a algo como a Otan.
Assim, a parte mais perigosa da ordem mundial contemporânea é o Norte Global. Não existe multipolaridade. Não gosto completamente da ideia de um mundo multipolar, porque isso sugere que existe igualdade entre o bloco dos Estados Unidos e os outros países do mundo, o que não é verdade.
O bloco real – e terrorista – é o Norte. E então há outros grupos pelo mundo. Portanto, falar em multipolaridade dá às pessoas uma ideia enganosa de que o mundo é de alguma forma plano, enquanto os Estados Unidos e o seu bloco são realmente perigosos.
As diferenças entre os grupos políticos ocidentais desmancharam no ar. Mesmo partidos social-democratas e verdes apresentam, hoje, posições pró-guerra, as quais são radicais até mesmo para a extrema direita. Como superar essa contradição?
Bem, isso é um problema europeu, não é problema meu. Isso é para os europeus resolverem. Na Alemanha, o Partido Verde está mais à direita do que os fascistas. Quer dizer, posso compreender os liberais franceses chateados com a ascensão de Le Pen. Isso é uma coisa terrível.
Mas para o Sul global, não sei se importa se Macron é o presidente ou Marine Le Pen. Eu realmente não sei se isso importa. Então realmente depende de quem você está falando. De quem é o perigo? Macron é bom para o Sul global? Eu não acho.
Não creio que Macron tenha feito alguma coisa para promover a crise da dívida, a crise climática ou a crise da guerra. Ele quer enviar tropas para a Ucrânia. O que os franceses fizeram sobre a Palestina? Sim. Qual é a diferença para Le Pen do ponto de vista do Sul?.
Portanto, vamos deixar os europeus lidar com isso. Por que deveríamos gastar tanta energia tentando pensar nos problemas deles? Eles gastam alguma energia pensando nos problemas do Brasil, de Burkina Faso ou de qualquer outro lugar? Eles não se importam. Os europeus nem sabem onde ficam esses lugares. Então, por que deveríamos gastar tanto perguntando sobre eles?
É como o presidente Mao debatendo com Palmiro Togliatti e os comunista italianos sobre a revolução mundial: os comunistas italianos eram mais europeus do que comunistas no fim das contas.
Como podemos restabelecer um movimento internacional contra a guerra que mobilize os trabalhadores e o povo?
Eu inverteria essa questão, porque o mais importante é como construímos um movimento internacional da classe trabalhadora e camponesa? Porque o resultado do movimento internacional da classe trabalhadora e camponesa será um movimento de paz.
Tomemos, por exemplo, se tentarmos construir um movimento imediatamente pela paz, acabará sendo um movimento de classe média. Porque essas questões são “verdes”, do tipo “vamos salvar as alterações climáticas”. Tudo isso. Se começarmos a nossa política a partir das questões das alterações climáticas, da paz e assim por diante, acabaremos na classe média.
Portanto, a questão principal é como reconstruímos o poder da classe trabalhadora e dos camponeses? Como fazemos isso? Primeiro? E isso é difícil porque à medida que o projecto neoliberal se aprofunda, cada vez mais pessoas nas nossas sociedades trabalham de forma precária e é difícil organizar trabalhadores precários de forma prática. Sim, eles estão aí.
O capitalismo cria formas de emprego que tornam a organização cada vez mais difícil. Existem formas de emprego em que as pessoas trabalham o tempo inteiro. Há formas de contratação em que o contrato é ao minuto, o que é assustador
Então, o segundo problema é que às vezes há lei trabalhista, mas ninguém liga. Mas em muitos países sequer há direito trabalhista. Nesse contexto de precarização, é muito difícil organizar a massa trabalhadora. Portanto, a nossa principal tarefa neste período é construir a confiança e o poder da classe trabalhadora. Essa é uma tarefa primordial da esquerda. E junto disso é que você tem que atrair as pessoas para uma utopia. Você não pode simplesmente ir até as pessoas e dizer: junte-se ao movimento porque sua vida é uma merda.
Você não vai querer a esquerda. A política está fugindo do mundo. Você quer sair da política ou correr em direção a algo, certo? E você não entra no MST só porque não gosta de ficar sem terra. Temos de dizer “participe, porque vamos criar um mundo melhor”. Então você tem que trazer pessoas para isso, não por causa desse tipo de movimento voltado para trás.
Então, na minha opinião, o único jeito de construir um movimento pelo clima e pela paz é construir um movimento de trabalhadores e camponeses. Imagine ir a uma comunidade de trabalhadores e fala sobre parar de comer carne para salvar o mundo. Primeiro, boa parte da classe trabalhadora global não come carne porque não consegue.
Como construímos esse poder camponês da classe trabalhadora? Como construímos uma utopia das massas populares? Se pudéssemos, gostaríamos de construir, tipo, um centro comunitário nas áreas mais pobres onde seus filhos possam aprender a brincar a guitarra. Queremos uma favela onde não haja drogas e tiroteios. Queremos criar um mundo onde as pessoas se reúnam e digam: vamos limpar nossas ruas.
Vamos garantir que nossas ruas estejam limpas. Nós vamos fazer isso por nós mesmos, sabe? E quando começarmos a fazer isso, queremos que o Estado, que talvez seja até certo ponto um Estado amigável, nos dê recursos. Entrevistei uma mulher na Venezuela, em Caracas. Ela era uma mulher negra da classe trabalhadora que mora em uma vizinhança próxima a um grande bairro de classe média, com muitos prédios.
Ela me contou que esse lugar onde eles moram agora era um espaço vazio. Era lixo, foi jogado em bairros de classe média, prédios grandes e bonitos, mas tem muito lixo nessa área. Depois que Chávez venceu as eleições, um grupo formado principalmente por essas mulheres veio e assumiu o controle dessa área. E então esses vizinhos de classe média chamaram a polícia para despejá-las.
Algumas dessas mulheres foram ao governo e disseram: olha, não queremos causar problemas. Tudo o que a gente quer é material de construção, cimento, sabe, uma betoneira, sabe, essa é uma lista de coisas que precisamos e vamos precisar. Não queremos criar nenhum problema que vamos causar.
Na verdade, Chávez autorizou pessoalmente o envio do material. E elas construíram um prédio muito bonito, simples e de vários andares para suas famílias. E agora elas moram nesse bairro. Era apenas um terreno vazio e abandonado. Elas assumiram o controle e foi criado um clima de confiança.
Podemos fazer alguma coisa. Quando perguntei à mulher, o que você acha que vai acontecer se o governo mudar, ela disse, se o governo mudar, as pessoas desses edifícios enviarão escavadeiras para destruir as nossas casas.
É uma guerra de classes. Mas elas estavam confiantes de que lutarão para defender as suas casas. É isso que quero dizer com utopia. Elas agora têm belas casas. Eles têm apartamentos agradáveis. Elas têm um lugar onde podem colocar os filhos juntos. E então elas construíram tudo isso. Isso é tudo. Você tem que construir a confiança das pessoas da classe trabalhadora.
Uma combinação de organização de pessoas para resolver seus problemas e recursos de um Estado amigável. Isso é uma combinação. Hoje você tem milhões de brasileiros morando em favelas. Você precisa melhorar as condições de vida deles. Não é aceitável a situação atual. Ponto final.
Sobre os autores:
HUGO ALBUQUERQUE é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).
VIJAY PRASHAD é um historiador e comentarista marxista indiano. Ele é diretor-executivo do Tricontinental: Institute for Social Research, editor-chefe da LeftWord Books e membro sênior não-residente do Chongyang Institute for Financial Studies, Renmin University of China.
GABRIELA BARIZON É tradutora e intérprete em inglês e castelhano, atua com legendagem e traduziu A estrela vermelha brilha sobre a China (Autonomia Literária, 2023).
FONTE: Jacobina