Um importante fato do mundo político, anunciado desde o final de 2018, mereceu da imprensa menos atenção do que deveria. Trata-se da incorporação do Partido Pátria Livre (PPL) ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Por Fábio Palácio*
Sobre essa obra de engenharia política tão delicada quanto bem-sucedida, que resultou na fusão de duas históricas correntes da esquerda patriótica brasileira, o jornalismo político quase nada falou. Quando o fez, como em O Globo (1), justificou a junção como mero recurso para driblar a cláusula de barreira (2), passando ao largo da história e das afinidades entre as duas legendas.
Nada obstante, a novidade não passou despercebida àqueles que conhecem minimamente a história das organizações de esquerda no Brasil. Estamos diante de um fato transcendente da vida político-partidária nacional, que deveria polarizar as atenções dos verdadeiros democratas: aqueles que ainda acreditam na necessidade dos partidos políticos e, mais do que isso, defendem – como condição de um sistema político saudável – a existência de partidos autênticos, estribados em ideologia e princípios programáticos, existentes para formar quadros e realizar ideias de organização social, e não para miseravelmente organizar a distribuição de favores e prebendas.
Do PCdoB, a maior e mais conhecida das duas organizações, não é preciso dizer muito. É a histórica legenda fundada em 1922 por nomes como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão e Abílio de Nequete – seu primeiro secretário-geral. Ladeado por outros eventos de dimensão histórica, como a Semana de Arte Moderna e a Revolta do Forte de Copacabana – marco do tenentismo –, o nascimento do Partido Comunista deu-se como parte da modernização geral da sociedade brasileira, processo que incluiu o amadurecimento político da classe operária em conexão com importantes acontecimentos do cenário internacional, como a Revolução Russa de 1917.
Em sua existência quase centenária, o PCdoB foi sempre defensor intransigente da nação, da democracia e do trabalho. A par de outras forças patrióticas, organizou a vitoriosa campanha O petróleo é nosso!, que resultou na criação da Petrobras. Foi a primeira corrente política a defender a reforma agrária e direitos trabalhistas como jornada de oito horas, férias e décimo terceiro salário. Por estas e outras, passou mais de sessenta anos na clandestinidade. Suas lideranças foram submetidas a verdadeira caçada no Estado Novo (1937-1945) e na ditadura militar (1964-1985). Foi o partido que mais perdeu quadros e militantes, perseguidos e mortos pelas forças da reação.
Nos anos 1930, à frente da Aliança Nacional Libertadora, o partido empreendeu heroica resistência contra o fascismo e o integralismo. Por sugestão de seus parlamentares, a Constituição de 1945 estampou pioneiramente a garantia da liberdade religiosa. Na década de 1970, em defesa das liberdades democráticas, organizou a epopeica Guerrilha do Araguaia. Impulsionou também a Campanha da Anistia e foi decisivo para a derrota da ditadura militar em 1985, com a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral. Nos anos 1990, protagonizou as jornadas pelo impeachment de Collor e contra o neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso. Já neste século, contribuiu destacadamente para a eleição do ex-operário metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, inaugurando um novo ciclo político na história do país. Não à toa, um intelectual do quilate de Ferreira Gullar, referindo-se ao Partido, sentenciou em um de seus poemas: “Quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele / Ou estará mentindo”.
Quanto ao PPL, talvez seja necessário lembrar aos menos atentos que é a legenda sucessora do antigo Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR8. Boa parte de minha geração conhece esse grupamento político da película O que é isso, companheiro?, candidata ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1997. A produção, baseada no livro homônimo de Fernando Gabeira, traz a história do bem-sucedido sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, em setembro de 1969, por integrantes do MR8 e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Esse episódio heroico da luta contra a ditadura de 1964 resultou na libertação de quinze presos políticos, entre eles José Dirceu, mais tarde ministro da Casa Civil do governo Lula.
Porém, bem antes de assistir à cena em que, durante uma ação de guerrilha urbana, o então futuro ministro-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Lula, Franklin Martins (vivido pelo ator Luiz Fernando Guimarães), anuncia em tom triunfal: “Nós somos do Movimento Revolucionário 8 de Outubro!”, a sigla já não me era desconhecida. Tomei contato com ela nos primeiros anos 1990, quando de participações nos memoráveis congressos da União Nacional dos Estudantes. Àquela altura, coerente com sua visão de unidade nacional contra o inimigo comum imperialista, o MR8 atuava como corrente no interior do PMDB, agremiação na qual se abrigara – como de resto outras forças, incluindo os comunistas – desde os tempos em que o Movimento Democrático Brasileiro aglutinava a frente de oposição ao regime militar. Mesmo permanecendo no PMDB após o fim da ditadura, o “8” atuava com independência e fisionomia própria.
Encabeçando teses (3) como Detonar os inimigos do Brasil, demonstrava com fervor sua veia patriótico-revolucionária. Força de grande capacidade combativa, quase sempre podia ser flagrada em aliança com os comunistas, seja no movimento estudantil, seja nas lutas travadas a partir de outros movimentos populares.
Nascido de uma costela do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o MR8 reuniu em sua fundação membros da Dissidência da Guanabara (DI-GB). O nome da organização é uma homenagem ao revolucionário Ernesto “Che” Guevara, morto em combate na Bolívia em 8 de outubro de 1967. A Revolução Cubana inspirou largamente essa organização, que apostou na guerrilha como forma de resistência à ditadura e protagonizou, em plenos chamados anos de chumbo, célebres operações de resistência armada nas cidades, entre elas o sequestro – inédito em todo o mundo – de um diplomata americano por motivos políticos.
Segundo o pesquisador Ricardo Abreu de Melo (4) – também membro do Comitê Central do PCdoB –, o nacionalismo e o anti-imperialismo sempre foram marcas ideológicas do MR8. Muitos de seus dirigentes, formados na tradição marxista-leninista, o caracterizavam como uma força comunista. Isso fica claro em sua política de relações internacionais, que priorizava os países socialistas e seus partidos dirigentes, além de organizações “terceiro-mundistas” influenciadas pelos princípios da Conferência de Bandung (5), como o Partido Baath do Iraque. Essa linha política teve continuidade com o advento, em 2009, do PPL. Do ponto de vista programático, esse partido norteia-se “pelos princípios do socialismo científico” e propugna
[...] A constituição da mais ampla frente nacional, democrática e popular para completar a independência do Brasil, a ser alcançada com a crescente participação democrática e pluralista do povo brasileiro no processo político, de modo a que a riqueza nacional esteja cada vez mais a serviço do bem-estar dos trabalhadores e dos interesses do nosso desenvolvimento. (6)
Como facilmente se vê, a opção firmada por PPL e PCdoB vai muito além do cumprimento de burocráticas “cláusulas de desempenho” instituídas pelas forças do golpe de 2016 como forma de impedir a livre atuação de legendas históricas da vida política nacional. As organizações que ora se congregam empunham um projeto transformador para o Brasil: a retomada do desenvolvimento nacional soberano, com a reconquista da democracia e a ampliação dos direitos sociais e trabalhistas. Esse programa se reconhece na contramão do atual projeto de poder, capitaneado, aliás, por um partido sem fisionomia clara ou sólidos alicerces na vida do povo. Uma legenda até ontem desconhecida da maioria dos brasileiros, e cuja improvisada ascensão ao poder diz muito do projeto (ou da falta dele) que hoje se implanta em nosso país.
É discurso corrente na grande imprensa que a cláusula de barreira veio para “fortalecer” os partidos. Quando, porém, passamos em revista os partidos barrados, vemos que ali se encontram algumas das legendas mais bem vincadas do ponto de vista programático. E é neste ponto que perguntas se impõem: Que partidos queremos? Estamos realmente interessados em forças com nitidez ideológica? Almejamos algo mais do que cartórios políticos para registro de candidaturas e distribuição de cargos? Queremos partidos para uma democracia real ou para uma democracia de fachada? Nossos organismos partidários contribuem para a estabilidade democrática ou não passam de expressão da crise orgânica de nosso sistema político?
Se queremos partidos robustos, em que a fidelidade partidária não seja mera questão de cálculo ou conveniência, é preciso reconhecer que medidas como a cláusula de barreira, baseada no número de votos obtidos para a Câmara dos Deputados – repito: apenas para a Câmara dos Deputados –, não têm contribuído para esse propósito. Isso ocorre, desde logo, porque os problemas de nossa governança não derivam da quantidade de partidos, mas de sua incapacidade de desprender-se da autoindulgência para representar os verdadeiros interesses populares.
Isso posto, a abordagem da cláusula de barreira devia ser revista. Ainda que se admita o diagnóstico – de certo equivocado – segundo o qual temos “muitos partidos”, fica a pergunta: por que coagir à semiclandestinidade justamente aqueles que têm raízes e descortino programático – alguns deles, diga-se, nem tão pequenos assim, ainda mais quando se consideram critérios como o número de governadores, de senadores ou de deputados estaduais? Não seria a hora de pensar redutores alternativos à cláusula de barreira, capazes de combinar critérios quantitativos com outros, qualitativos, como o histórico das legendas e o fato de representarem posicionamentos ausentes do resto do espectro político refletido no parlamento? Afinal de contas, a força de um partido, ainda mais em um sistema político fortemente influenciado pelo poder econômico, não pode ser aquilatada unicamente através de números, quaisquer que sejam. Ela depende também da qualidade de sua elaboração política, de sua competência em formar quadros, de sua habilidade em consertar acordos e consensos, de sua presença nas organizações da sociedade civil e, sobretudo, de sua capacidade de encarnar os efetivos anseios do povo.
No momento mesmo em que escolhe somar forças com outros patriotas, o Partido Pátria Livre salva de nova proscrição a histórica legenda fundada em 1922. Pequeno em número, o PPL demonstra, com esse gesto, toda a magnitude de sua grandeza como organização partidária.
Quantas forças, mesmo entre as mais abnegadas do campo da esquerda, teriam tamanho desprendimento? Só um partido efetivamente revolucionário fenece para unir-se ao PCdoB e multiplicar a chama da revolução. O PPL repete assim, no plano institucional e em outras circunstâncias, aquilo que fizeram inúmeros combatentes da luta contra a ditadura, que deram a vida pela redenção democrática do Brasil. Os militantes desse partido demonstram, além de enorme generosidade, titânica coragem: a de empunhar a foice e o martelo no momento em que o fascismo galopante tenta banir esse símbolo.
Tivéssemos um jornalismo político digno desse nome, efetivamente preocupado com a saúde de nossos partidos, essa atitude seria cantada em verso e prosa nas páginas de nossa imprensa.
Notas
(1) Cf. KRAKOVICS, F. “Sem conseguirem atingir cláusula de barreira, PCdoB vai incorporar PPL”. O Globo [online]. 27 nov. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/sem-conseguirem-atingir-clausula-de-barreira-pcdob-vai-incorporar-ppl-23263606>.
(2) Dispositivo legal que restringe o funcionamento de partidos que não alcançam determinado percentual de votos, impedindo o acesso a fundo partidário, tempo de TV e rádio e estrutura de liderança partidária no parlamento. A atual cláusula de barreira foi aprovada na reforma política de 2017 e estabelece como linha de corte inicial (crescente nas eleições seguintes) o patamar de 1,5% dos votos nacionais ou a eleição de nove deputados em nove estados.
(3) Nos congressos estudantis, as correntes organizadas costumam apresentar-se como “teses”, documentos políticos que aglutinam não apenas os membros dessas correntes, mas todos aqueles que os subscrevem.
(4) MELO, R.A. O Foro de São Paulo: uma experiência internacionalista de partidos de esquerda latino-americanos (1990-2015). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.
(5) A Conferência de Bandung, ocorrida em 1955, reuniu 29 países asiáticos e africanos e inaugurou o movimento dos não alinhados, que pretendia constituir-se como nova força política global (o Terceiro Mundo) por meio da cooperação econômica e cultural entre países que desejavam afastar-se tanto da órbita americana quanto da soviética. O movimento influenciou inúmeras organizações políticas, em particular na Ásia e na África, mas também na América Latina e na Europa.
(6) PARTIDO PÁTRIA LIVRE. Estatuto do PPL. Brasil, 2009. Disponível em:
*Fábio Palácio é professor de jornalismo no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão.
FONTE: Portal Vermelho