sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Uma história pessoal com o azeite da Palestina


Esta deliciosa história pessoal de Dima Seelawi, uma jovem americana de origem palestina e sua relação com o azeite. Imagine o mesmo óleo glorioso num lindo frasco de vidro com o nome Zatoun escrito. Aproveite!

Quando eu era jovem, nunca entendi a insistência dos meus pais em usar apenas azeite importado da Palestina. Demorou muito e demorou muito, num processo que não era barato nem conveniente. O óleo vinha em recipientes velhos e surrados que não me pareciam nada atraentes. Na minha cabeça, se eles quisessem sustentar uma família distante em casa, poderiam simplesmente enviar-lhes dinheiro e poupar a nós e a eles um grande aborrecimento. Poderíamos apenas usar os lindos recipientes de azeite da loja próxima. No entanto, isso nunca foi uma opção em nossa casa. O único azeite que usávamos em casa era o da Palestina.

À medida que cresci e comecei a trabalhar meio período como estudante, trabalhei um pouco com azeite. Eu sabia tudo sobre o azeite importado da Espanha, Itália e outros países. Eu sabia quais eram melhores e mais caros. Também aprendi a saber, pelo sabor picante, quais eram extra virgens. Fiquei tentado a usar meu desconto de funcionário para levar para casa uma das garrafas sofisticadas e usar em nossa cozinha. Eu não conseguia fazer isso e não sabia exatamente por quê. Achei que seria desrespeitoso com meus pais, mesmo que não fizesse sentido para mim. Não parecia certo. Não era uma opção.

Depois de viver um ano na Palestina durante a época da colheita da azeitona, algo mudou. A época da colheita da azeitona na Palestina é sagrada.

Os palestinos se relacionam com o clima com base em como ele beneficiaria ou prejudicaria as azeitonas. Existe uma regra tácita bem conhecida sobre tratar as oliveiras com respeito. Há um dia de folga do trabalho só para colher azeitonas. No transporte público, não é incomum ouvir alguém ao telefone dizendo ao amigo para passar por aqui para pegar sua parte do azeite deste ano armazenado no que costumava ser uma Coca-Cola ou uma garrafa de bebida alcoólica. Um motorista vai parar no meio do caminho para dar ao cunhado um pote de azeitonas que estão tão próximas umas das outras que começam a amassar mostrando o interior.

Em Nablus, o proprietário da fábrica de sabonetes Nabulsi orgulha-se de ser exigente na obtenção do seu azeite. Ele insiste em encher um copo para me deixar sentir o quão autêntico é e sorri ao ver minhas expressões faciais diaspóricas se transformarem em apreciação ao seu cheiro forte percorrendo todas as minhas células cerebrais.

Comecei a perceber como o azeite é parte essencial de tantos pratos. “Os palestinos bebem mais azeite do que água”, eu dizia brincando e eles riam concordando. O azeite é verdadeiramente um ritual diário.

Eles fantasiam sobre sua cor quando está fresco e me lembram que ela começa a mudar à medida que reage com o oxigênio ao longo do tempo. Mergulham o pão no azeite, sem mais nem menos, e sem acréscimos, e apreciam-no mais do que o mais doce de todos os alimentos. Posso garantir que cada convite para almoço que recebi durante a época da colheita da azeitona foi uma oportunidade para os meus anfitriões partilharem o seu azeite usando Msakhan (um prato tradicional palestino).

Agora tenho uma compreensão mais profunda da psicologia por trás da queima de oliveiras por soldados israelenses e por que os agricultores gemem no local como se tivessem perdido um ente querido.

Onde quer que você esteja, se estiver acessível, certifique-se de que seu azeite seja palestino. Seus ancestrais iriam querer isso.

Dima Seelawi

FONTE: Zatoun

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A Lei 10.639/03 está sendo implementada em todo Brasil? Veja Pesquisa.

Créditos: Geledés

Lei 10.639/03, promulgada há 20 anos, obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas.

No entanto, o tema está fora da maioria dos currículos e do orçamento dos estados da região

Sete em dez Secretarias Municipais de Educação da região Sul do Brasil realizam pouca ou nenhuma ação para cumprir a Lei 10.639/03, promulgada há 20 anos, e que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas. Esses dados foram obtidos por meio de uma análise regional da pesquisa Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, com 1.187 Secretarias Municipais de Educação em todo o Brasil, o que corresponde a 21% dos municípios do país.


Esses dados da região seguem a média nacional, em que 71% das secretarias organizam pouca ou nenhuma ação ligadas ao tema. 210 secretarias da região Sul responderam à pesquisa, perfazendo 18% do total de respondentes do estudo.

Paraná, o estado com maior participação na região, teve 28% de adesão à pesquisa, seguido por Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ambos com 12%. No levantamento, estados com menos de 20% de municípios respondentes não permitem generalização da análise.

62% dos municípios do Paraná estão em adaptação curricular para atendimento da lei, dado acima da média nacional (58%). Isso acontece também com investimento, onde 41% disponibilizam recursos para o cumprimento da lei, índice também acima da média nacional (39%).

Das 62 secretarias respondentes do Rio Grande do Sul, 60% realizam ações consistentes e perenes para a aplicação da Lei 10.639/03 e 85% dos municípios do estado investem e disponibilizam recursos para a implementação da lei. No entanto, poucos (11%) observam indicadores de aprendizagem considerando raça e cor dos estudantes, o que está muito abaixo da média nacional (24%).

35 secretarias de Santa Catarina responderam ao estudo. Destas, 77% não cumprem a Lei 10.639/03. Mais da metade das redes respondentes (60%) adaptaram o currículo considerando a lei.

Para mais dados sobre cada um dos estados do Sul, acesse aqui a ficha técnica com o resumo regional.

A pesquisa mostra, também, que a maioria das ações realizadas por secretarias desses estados para apoiar as escolas no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira são orientações sobre medidas a serem tomadas em casos de racismo e orientações sobre práticas pedagógicas e atividades didáticas.

A percepção dos municípios respondentes sobre os desafios para a implementação da lei é a de que há ausência de apoio de governos, organizações e empresas, além da dificuldade dos gestores e profissionais em transpor o que está previsto nos currículos para os projetos das escolas.

Outro desafio identificado na região está no alocamento de recursos específicos para o cumprimento da lei. Ainda que cerca de 40% do território nacional realize investimentos e disponibilize recursos financeiros, apenas 8% das secretarias do Brasil e 15% do Sul possuem orçamento específico para implementá-la.

“A Lei 10.639/03 é a principal ferramenta para combater o racismo e para construir uma perspectiva positiva sobre as contribuições da população africana e afro-brasileira na nossa história e cultura, o que contribui para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”, comenta Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana.

“Nesse sentido, governos, sociedade e escolas devem unir esforços para realizar ações de fortalecimento da administração pública, com o uso de indicadores de raça e cor para formulação e monitoramento de políticas educacionais, como também para a formação de professores e a escolha de materiais didáticos adequados. É um processo que demanda tempo e esforço imediato desses diferentes atores”.

Como foi feito o estudo | A pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira” foi desenvolvida em duas etapas: quantitativa e qualitativa. Em abril de 2023, foram publicados os resultados da etapa quantitativa.

Os dados desta etapa foram coletados por meio de um formulário de auto preenchimento voluntário, respondido pelas secretarias ao longo de 2022. Participaram 1.187 Secretarias Municipais de Educação, ou seja, 21% de todos os municípios brasileiros, com respondentes nas cinco regiões do país.

Foram verificadas como e se as secretarias respondentes construíram condições para combater o racismo estrutural, quais os passos percorridos, as lacunas existentes e os desafios que compõem o grave cenário da implementação da Lei 10.639/03 nas redes municipais de ensino, principais responsáveis pela educação básica do país. A etapa qualitativa, que investiga a aplicação prática da lei sobre história e cultura afro-brasileira em seis municípios, será divulgada em novembro de 2023.

“Nós esperamos que este estudo contribua para a discussão sobre como a intencionalidade de organização das secretarias para induzir e fortalecer a implementação da lei, por meio do planejamento articulado e contínuo, impacta a atuação das redes escolares no combate ao racismo”, diz Tânia Portella, representante do Geledés.

“Se colocada em prática, a lei pode impactar a vida de todos os estudantes e profissionais da educação, ao trazer referências que dialogam com os saberes de todos os povos e realidades, promovendo mudanças de percepções e comportamentos nas pessoas. Impacta a comunidade escolar, o entorno e com o tempo, se deseja alcançar um conjunto mais amplo da sociedade a partir do conhecimento, reconhecimento e valorização de realidades e abordagens que foram invisibilizadas ao longo da história brasileira”, finaliza.

A pesquisa é uma iniciativa conjunta de Geledés e Alana, encomendada à Plano CDE, recebeu o apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) e da Imaginable Futures.

Sobre Geledés Instituto da Mulher Negra

É uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros, pois são segmentos sociais que padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira. Posiciona-se também contra todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como lesbofobia, transfobia, bifobia, homofobia, os preconceitos regionais, de credo, de opinião e de classe social.

Sobre o Instituto Alana

O Instituto Alana é uma organização de impacto socioambiental que promove e inspira um mundo melhor para as crianças. Um mundo sustentável, justo, inclusivo, igualitário e plural. Um mundo que celebra e protege a democracia, a justiça social, os direitos humanos e das crianças com prioridade absoluta. Um mundo que cuida dos seus povos, de suas florestas, dos seus mares, do seu ar.

Linktree com mais informações sobre a pesquisa.

Acesse o link para receber a pesquisa inédita no lançamento.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Bacia da Foz não é a foz do rio

 (Foto: Kanok Sulaiman / Getty Images)

Por João Clark*

Ao acompanhar os recentes debates sobre a exploração de petróleo e gás na Margem Equatorial brasileira, incluindo audiências públicas no Congresso Nacional, algumas vezes me deparei com a expressão “exploração de petróleo na foz do rio Amazonas”. Um erro recorrente, repetido inclusive na imprensa.

Trata-se, afinal, de um equívoco de ordem semântica e sintática que tanto confunde a opinião pública sobre a toponímia da região. Ao se ocultar a palavra “bacia” e incluir a palavra “rio”, gera-se uma distorção cognitiva que induz o interlocutor a pensar que a localização dos projetos exploratórios na Bacia da Foz do Amazonas está próxima da floresta.

Diante disso, torna-se fundamental esclarecer a confusão. A Bacia da Foz do Amazonas é uma das cinco bacias sedimentares que compõem a nossa Margem Equatorial e corresponde a uma área de 283 mil km², o que inclui a plataforma continental, o talude e a região de águas profundas e ultraprofundas, onde, ao longo do tempo geológico, se depositaram os sedimentos que costumam formar as rochas fonte, reservatório e capeadoras de petróleo e gás natural.

Figura 1: Localização dos blocos da Bacia da Foz do Amazonas.
Em azul mais claro está a plataforma continental e em azul escuro
a região de águas profundas com embasamento de crosta oceânica.

Para além do talude continental, os blocos exploratórios estão situados em águas ultraprofundas, a 530 km da foz do Rio Amazonas e a 175 km do litoral norte do Amapá (Figura 1).

Quando ainda detinha o monopólio do E&P no Brasil, a Petrobras utilizou referências geográficas (geralmente em terra) para denominar as bacias sedimentares costeiras, limitadas por altos estruturais do embasamento cristalino. Desse modo, a bacia sedimentar de Campos não fica na cidade de Campos, a bacia sedimentar de Santos não fica na cidade de Santos e a Bacia da Foz do Amazonas, por sua vez, não fica apenas na foz do Rio Amazonas.

Tomemos as bacias marítimas de Campos e Santos, que respondem por cerca de 94% da produção nacional de petróleo e gás. Milhares de poços já foram perfurados nessas bacias, dezenas de plataformas de produção operam com seus respectivos equipamentos submarinos e milhares de quilômetros de linhas, cabos, umbilicais e dutos percorrem o leito marinho.

Agora reparem, na Figura 2, que os principais campos petrolíferos dessas bacias se situam em águas profundas e ultraprofundas a distâncias semelhantes da costa àqueles blocos da Bacia da Foz do Amazonas.

Como se vê, toda a estrutura de produção de petróleo defronta a Baía de Guanabara, Cabo Frio, Búzios, Macaé, Niterói, as praias do Rio de Janeiro, a restinga da Marambaia, a baía de Angra dos Reis, a Ilha Grande, Parati, a Ilhabela e o litoral norte de São Paulo. A região citada é berço em terra do nosso riquíssimo bioma de Mata Atlântica e de fauna e flora marinhas também ricas em biodiversidade.

Figura 2: Blocos petrolíferos das bacias de Santos e Campos

A Petrobras explora e produz em toda esta extensão geográfica há décadas, sem jamais ter registrado um acidente ambiental significativo.

Voltemos, portanto, à Bacia da Foz do Amazonas. Chegou a hora de alcançarmos um consenso para licenciar a perfuração dos poços exploratórios naquela região. Não pode haver um impasse inegociável e intransponível que permita que se perca ainda mais tempo nas decisões – neste caso, já se foram 10 anos.

Cabe ressaltar que o estabelecimento e direcionamento da política energética brasileira pertencem ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), colegiado composto por 16 ministérios, o presidente da EPE e três representantes da sociedade civil. O Ibama, todos concordam, é um órgão técnico e cabe à Petrobras responder aos questionamentos e seguir os termos de referência indicados.

Na ocasião da audiência pública, fiquei aliviado quando o presidente do Ibama afirmou que os supostos “corais da foz do Amazonas” não estão sendo considerados na discussão da emissão da licença, pois eu entendo que a presença e até a existência desses corais carecem de confirmação científica. Isso demonstra que pode haver bom senso na condução deste processo.

Que se inicie logo a perfuração exploratória na Margem Equatorial.

*João Clark é geólogo. Foi presidente da Ecopetrol no Brasil entre 2011 e 2019. Foi também country manager da Canacol Energy e da Paradigm Geophysical, superintendente adjunto da ANP, diretor executivo e membro do Conselho da ABEP/IBP e gerente de exploração da Norse Energy.



sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Congresso protege ricaços e ataca sindicatos

Charge: Zé Dassilva

Apesar da vitória épica de Lula na sucessão presidencial, as eleições para senadores e deputados federais em outubro passado ainda refletiram a avalanche reacionária vivida pelo Brasil nos últimos anos. O Congresso Nacional é hoje um antro das forças conservadoras, com fortes bancadas que defendem os interesses da cloaca burguesa e fazem de tudo para prejudicar os trabalhadores e suas formas de luta e organização. Isso ficou mais uma vez evidente no início desta semana.

Nesta quarta-feira (4), a Câmara dos Deputados adiou a votação do projeto de lei que trata da tributação dos chamados fundos dos super-ricos e das offshores. A decisão foi tomada após reunião dos líderes partidários com o presidente da casa e chefão do Centrão, Arthur Lira (PP-AL). Conforme registrou o site Metrópoles, “o adiamento é uma derrota para o governo federal, sobretudo para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que conta com o projeto para aumentar a arrecadação”.

Os investimentos em offshore são feitos em paraísos fiscais – que também escondem dinheiro do tráfico de drogas e de armas. Eles visam basicamente sonegar impostos e desviar grana para o exterior. Já os fundos exclusivos, também apelidados de fundos dos super-ricos, são assim denominados porque só tem um cotista. Por seus altos custos, eles são utilizados normalmente por detentores de grandes fortunas e somam menos de 3 mil investidores no Brasil. Eles não são tributados e rendem milhões para os abutres financeiros.

Obstáculos à contribuição negocial

No extremo oposto, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal aprovou, na terça-feira (3), o projeto de lei que proíbe a obrigatoriedade da contribuição negocial para o sindicalismo brasileiro. O texto seguirá agora para a Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Por ter caráter terminativo, caso aprovada na CAS, a proposta será direcionada para votação na Câmara dos Deputados.

O PL nº 2.099/2023 representa um duro golpe na organização de classe dos trabalhadores. Ele impede que a contribuição negocial seja cobrada sem autorização por escrito. No mês passado, o Supremo Tribunal Federal entendeu que essa cobrança é constitucional para os não filiados em caso de acordo, sentença judicial ou convenção coletiva. O STF ressaltou, porém, que os trabalhadores têm o direito de se opor. O projeto aprovado na CAE, relatado pelo senador bolsonarista Rogério Marinho (PL-RN), exige a autorização prévia e expressa para que os sindicatos possam realizar a cobrança. O PL visa asfixiar financeiramente as entidades de classe.

Para os ricaços, tudo! Offshore e fundos exclusivos para garantir a sonegação de impostos e o desvio de grana ao exterior. Já para os trabalhadores, nada! Nem o direito de contar com uma organização sindical forte, capaz de travar as lutas por avanços trabalhistas, empregos de qualidade e melhoria de renda. O Congresso Nacional virou, de fato, um antro das forças conservadoras! Sem pressão das ruas, ele não mudará de rumo!

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Os Comunistas e a “Constituição Cidadã de 1988


Por Raul Carrion*

Este 5 de outubro marca os 35 anos da promulgação da Constituição de 1988.

Em 1985, com a vitória de Tancredo Neves no “Colégio Eleitoral” – criado para perpetuar a ditadura militar –, os militares tiveram que sair de cena, mas conservaram importantes parcelas de poder.

Com a morte de Tancredo Neves, quem assumiu a Presidência da República foi José Sarney, ex-presidente da ARENA, que – impulsionado pela Campanha das DIRETAS JÁ – havia aderido à luta pela redemocratização do país.

As eleições por ele convocadas em 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte, apesar de ocorrerem após o fim do regime militar, ainda tiveram muitas limitações, na maior parte herdadas da legislação ditatorial, como o diferente peso do voto entre os pequenos e os grandes Estados, o privilégio dos grandes Partidos quanto aos tempos de Rádio e TV, etc. A isso tudo, somou-se o peso avassalador do poder econômico e midiático das elites dominantes.

Isso refletiu-se na composição da Assembleia Constituinte que, segundo pesquisa da época, tinha 22,5% de parlamentares de esquerda, 32,5% de centro e 27,6% de direita.

Apesar dessa correlação de forças desfavorável, a Constituição de 1988 teve em geral um caráter progressista, o que teve muito a ver com as grandes mobilizações pelas DIRETAS JÁ e pela redemocratização do país. Nesse processo, foram decisivas a amplitude e a unidade entre o PCdoB, PT, PDT, PSB, PCB e a esquerda do PMDB, independente de diferenças em certas questões.

Os comunistas – que no processo eleitoral já haviam divulgado suas “Propostas do PCdoB à Constituinte”, distribuídas em 16 subitens, apresentaram 1003 emendas através de seus cinco deputados constituintes (Haroldo Lima, Aldo Arantes, Edmilson Valentim, Eduardo Bomfim e Lídice da Mata), com a participação direta de João Amazonas. Destas, 204 foram aprovadas.

Por emendas próprias ou através da fusão de emendas, o PCdoB contribuiu para a aprovação de importantes dispositivos constitucionais, como a definição da moradia como asilo inviolável do cidadão, o piso salarial, a jornada de 6 horas nos turnos ininterruptos de trabalho, o direito de greve dos trabalhadores privados e públicos, a liberdade e a unicidade sindicais, a revisão da remuneração dos servidores civis e militares na mesma ocasião e com os mesmos índices, o direito ao voto a partir dos 16 anos, o direito de qualquer cidadão propor ações populares, normas para a Reforma Urbana, o conceito de empresa brasileira de capital nacional, etc.

É preciso destacar, também, as 122 emendas populares, subscritas por quase 12,3 milhões de brasileiros, nas quais os comunistas tiveram um importante protagonismo. Igualmente foram decisivas, no enfrentamento da articulação direitista do “Centrão”, as grandes mobilizações populares em torno das questões prioritárias e mais polêmicas.

Assim, apesar da correlação de forças extremamente desfavorável, foi possível, com realismo e muito diálogo, aprovar uma Constituição no essencial progressista – ainda que com lacunas e pontos negativos. Por isso, o PCdoB – reservando-se ao direito de críticas pontuais – votou a favor do projeto final e assinou a Constituição aprovada.

Discurso de Ulisses Guimarães na promulgação da Constituição

Salvo raras exceções, as emendas posteriores à “Constituição Cidadã” de 1988, só vieram a piorá-la, justificando a sua defesa, frente à ofensiva neoliberal e reacionária para desfigurá-la.

Ao comemorarmos os 35 anos da sua promulgação, concluo este texto transcrevendo trechos do discurso de Ulisses Guimarães no momento de sua promulgação:

“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria!

Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério!

Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”

Continuemos a nossa luta por um Brasil Soberano, Democrático e mais Justo, um dia Socialista!

*Raul Kroeff Machado Carrion é um historiador, sindicalista, escritor e político brasileiro. Foi vereador de Porto Alegre e duas vezes Deputado estadual do Rio Grande do Sul, tendo militado por mais de 50 anos no Partido Comunista do Brasil (PCdoB).








FONTE: Via WhatsApp do autor

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Sete em cada dez salas das escolas públicas do país não são climatizadas, mostra Censo do Inep

Foto: Pixabay

Com uma baqueta para bumbo sendo feita de microfone de mentirinha, a estudante Ana Tinaele Pereira Sousa, de 17 anos, aparece na tela logo depois da famosa vinheta da TV Globo de notícias urgentes. Séria, ela informa: “Morre hoje uma aluna identificada como Rayssa. Alunos afirmam que a causa da sua morte foi o excesso de calor na escola”. As imagens mostram uma jovem deitada com carteiras em volta que, cobertas de um pano verde, imitam um caixão no chão da escola, no interior do Tocantins.

O vídeo, que viralizou nas redes na última semana, denuncia com bom humor o despreparo das escolas brasileiras para o estresse térmico, condição em que o calor é superior ao que o corpo humano pode suportar por pelo menos 25 dias no ano, um fenômeno que já atinge áreas onde vivem 38 milhões de brasileiros. E, nesse cenário, sete em cada dez salas de aula de unidades municipais e estaduais no país não são climatizadas, segundo o Censo Escolar de 2022.

— Essa foi uma ideia que surgiu do nada, em tom de brincadeira, mas querendo trazer esse assunto. A situação da nossa escola está bem precária. Ela foi construída em 1997 e, desde então, só teve ventiladores. Tem salas em que eles nem funcionam mais — conta Ana , aluna do Colégio Estadual Vicente José Vieira, em Barro do Ouro, Tocantins.

Entre as sete maiores cidades brasileiras que já vivem em estresse térmico (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Manaus, Belém e Goiânia), somente três — as capitais fluminense, pernambucana e amazonense — possuem mais da metade das salas climatizadas.

Nas últimas duas semanas, o Brasil chegou a registrar temperatura de 43,5°C, em São Romão (MG), onde nenhuma sala de aula é climatizada. Professores e alunos vêm buscando soluções improvisadas. No Amazonas, estudantes de São Paulo de Olivença foram ter aula no quintal. Em Goiás, jovens levaram seu próprio ventilador para a sala de aula em Aparecida de Goiânia para se refrescarem. Escolas de Minas Gerais e do Piauí diminuíram o tempo de aula nos dias mais quentes. Já em Mogi Mirim, no interior de São Paulo, Flávia Alvarenga não mandou o filho para a escola um dia por causa do calor — na véspera, uma colega dele passou mal.

— O ventilador está quebrado e só fica parado para um lado. Então, tem briga dos alunos para ver quem vai sentar no vento — diz Alvarenga.

Alguns profissionais da educação encontraram uma solução na base da farra. Cerca de 700 crianças participaram de um “recreio molhado” em duas escolas de São João do Caiuá, no Paraná. Em Brasília, a Escola Classe 106 Norte criou um banho de mangueira para as turmas. A ideia partiu da direção, que conversou com os pais. Com o sucesso, pequenas piscinas foram compradas também.

— O calor excessivo acaba interferindo nas atividades, então esse tipo de medida representa a escola cumprindo sua função de pensar em estratégias para contornar os obstáculos entre os estudantes e o processo de ensino-aprendizagem — conta Laryssa Lima, professora da Escola Classe 106 Norte. — As crianças têm o cronograma na ponta da língua. Sabem exatamente os dias e horários e já vêm prontinhos para a experiência.

De acordo com definição do Inep, responsável pelo Censo, entende-se como salas de aula climatizadas aquelas que possuem equipamentos (ar-condicionado, aquecedor ou climatizador) em funcionamento para manter a temperatura agradável. As duas maiores redes estaduais são as que têm os menores índices de climatização: São Paulo, com 10% das salas, e Minas Gerais, com 8%. Já a rede de Rondônia (uma das menores do país) conta com 85% das salas climatizadas. O índice do Rio é de 43% e o governo diz que já comprou aparelhos de ar-condicionado para 983 escolas e que só faltam mais 250, em estudo.

Em Diadema, só ventilador
No país, 225 cidades têm pelo menos 95% das salas com ar-condicionado, enquanto 764 cidades não têm ar-condicionado em nenhuma escola. A maior nessa situação é Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo, com quase 1,5 mil salas de aula, somando as redes estadual e municipal.

Pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) mediram durante um ano a variação térmica de escolas em Minas Gerais e descobriram que os maiores problemas de falta de atenção dos alunos se davam justamente em períodos muito quentes ou muito frios.

— Situação de desconforto físico faz com que o corpo não mantenha o foco no que está sendo passado em sala de aula. Se tira o aluno da zona de bem-estar, os níveis de atenção fatalmente decaem — diz Caio Marçal, doutorando na Faculdade de Educação da USP.

Em nota, a prefeitura de Diadema informou que as escolas são ventiladas com ventiladores, “equipamentos adequados às necessidades das unidades escolares quando se considera o clima regional”. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo informou que destinou R$ 70 milhões para a compra de aparelhos de ar-condicionado para as escolas, e que R$ 50 milhões já foram liberados para 210 unidades. O governo do Tocantins afirmou que estuda a redução do tempo de aula em cada escola.