Por Deolindo Amorim*
Nem sempre, divergência significa desunião. Se é verdade que as divergências
ou discordâncias, algumas vezes, já comprometeram a união entre pessoas e
grupos, não se deve dar a esse fato a extensão de uma regra geral, pois é,
apenas, um episódio discrepante. Onde há duas pessoas, frente a frente, sempre
há o que ou em que discordar. Seria impossível a existência de um grupo humano,
por menor que fosse, sem um pensamento discordante, sem uma opinião contrária a
qualquer coisa. Entre dois amigos, como entre dois irmãos muito afins, pode
haver divergência frontal ou inconciliável, em matéria política, religiosa,
social etc, sem que haja qualquer "arranhão" na amizade. Discutem, discordam,
assumem posições opostas, mas continuam unidos.
Justamente por isso, e pelo que observo na vida cotidiana, não creio ser
necessário abalar as divergências ou evitar qualquer discussão, ainda que em
termos altos, simplesmente para preservar a união de um grupo ou de uma
coletividade inteira. Seria o caso, em última hipótese, de acabar, de vez, com o
diálogo e adotar, logo, um tipo de vida conventual. O diálogo é uma necessidade,
pois é dialogando que trocamos idéias e permutamos opiniões e experiências. Uma
comunidade que não admite o diálogo está condenada, por si mesma, a ficar parada
no tempo. Cada qual, naturalmente, deve preparar-se ou educar-se,
espiritualmente, para discutir ou divergir, sem prevenções ou ressentimentos. O
fato de não concordarmos com a opinião de um companheiro, neste ou naquele
sentido, ou de não adotarmos a linha de pensamento de uma instituição, deve ser
encarado com naturalidade, mas não deve servir de motivo (jamais!) para que
mudemos a maneira de tratar ou viremos as costas a alguém. Seria o caso de
perguntar: e onde está o Evangelho que se prega a todo momento? ... Como falar
em Evangelho, que é humildade e amor, e fugir a um abraço sincero ou negar um
aperto de mão por causa de uma divergência ou de um ponto de vista?
Então, não é a divergência aqui ou ali que, porventura, "cava o abismo da
desunião", é a incompreensão, o personalismo, o radicalismo do elemento humano,
em qualquer campo do pensamento. Já ouvi dizer, mais de uma vez, que os
espíritas são desunidos por causa das divergências internas. Sinceramente, não
acompanho esse ponto de vista. Acho que não há, propriamente, desunião, mas,
apenas, desencontro de idéias, fora dos pontos cardeais da Doutrina. Somos uma
comunidade composta de gente emancipada e, por isso mesmo, o campo está sempre
aberto ao estudo e à crítica. Certos observadores gostariam, por exemplo, que o
movimento espírita fosse um "bloco maciço", sem nenhuma nota fora do
conjunto.
É uma pretensão utópica, pois não há um movimento religioso, político ou lá o
que seja, sem alguma voz discordante, aqui ou ali.
Tomava-se como referência, até bem pouco tempo, a "unidade monolítica" da
Igreja Católica. Unidade relativa, diga-se de passagem. E o que se vê hoje? O
fracionamento, cada vez mais acentuado. Os grupos conservadores, porque se batem
pela manutenção da igreja tradicional, estão enfrentando os grupos renovadores,
partidários de modificações estruturais; grupos que querem a Igreja fora da
política estão em conflito com os grupos que querem, justamente, uma Igreja
participante no campo político. Há, portanto, demanda, de alto a baixo, com
programas de reforma, na teologia, como na administração e na disciplina
eclesiástica. Logo, a Igreja não oferece, hoje, a unidade doutrinária que nos
apontam, às vezes, como modelo. E o Protestantismo, que é outro grande movimento
religioso, não se divide em denominações e seitas, com características
diferentes entre si? Batistas, presbiterianos, adventistas, congregacionistas
etc. Não desejo criticar procedimentos religiosos, pois todos os cultos são
respeitáveis, mas estou anotando fatos.
Voltemo-nos para mais longe, fora da faixa ocidental, e lá está o Budismo,
também um movimento expressivo. Não cabe aqui discutir se o Budismo é ou não
religião. Seja como for, ocupa um espaço considerável, mas também se ramificou.
Existe hoje, pelo menos, mais de uma escola budista. O Positivismo, que viera da
França, teve muita força no Brasil, mas não se manteve íntegro, pois o grande
bloco se desmembrou, entre científicos e religiosos, no século passado.
Sobrevive, hoje, uma religião sem Deus, sem cogitação acerca da vida futura, mas
um culto ritualizado, com sacerdócio. Muitos discípulos de Auguste Comte não
queriam, de forma alguma, que o Positivismo se transformasse em religião e, por
isso, eram chamados de científicos, ao passo que muitos outros absorveram logo o
Positivismo, como Religião da Humanidade. E, realmente, implantaram um culto
religioso no Apostolado Positivista. Logo, também o Positivismo não conseguiu
sustentar um padrão uniforme.
O fenômeno que se observa, no meio espírita, é muito diferente. Sempre houve
divergências, mas não se quebrou a unidade doutrinária, que é fundamental. O
Espiritismo continua a ser um só, inconfundível: não se dividiu em diversos
"espiritismos". Há, entre nós, opiniões discordantes, em determinados aspectos;
porém os princípios são os mesmos, não se alteraram. Não formamos seitas nem
correntes à parte, apesar das divergências. Então, não há motivo para que
estejamos vendo desunião, onde há, simplesmente, desacordo de idéias.
(Jornal Tribuna Espírita" – set/out.98}
Fonte: Portal do Espirito
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