quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Interseccionalidade na prática: descobertas e táticas


 Conferência realizada em 02/12/2016 no Rio de Janeiro.
Por Debora Albu*
Saindo de uma conferência sobre feminismo e enfrentamento à violência contra a mulher nesse contexto de 21 dias de ativismo só consegui sentir uma felicidade enorme, apesar do peso e da dor que esses temas nos trazem.
A felicidade vinha da materialidade que o conceito de interseccionalidade tinha tomado ali. Uma mesa composta por mulheres de diferentes gerações, cores, territórios, ancestralidades e experiências concretizou aquilo que a teoria, muitas vezes, fica aquém de dar conta.
O conceito de interseccionalidade – palavra que meu Word não reconhece — foi cunhado pela professora e ativista do movimento negro norte-americano Kimberlé Crenshaw, em 1991, no artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color” (Mapeando as margens: interseccionalidade, política de identidade e violência contra mulheres não-brancas; tradução livre*) na Stanford Law Review. A interseccionalidade seria como uma lente, um dispositivo metodológico para ler uma diversidade de opressões incidindo sobre cada pessoa — e cada mulher — de formas diferentes, gerando não um somatório de opressões, mas sim, novas formas de opressão qualitativamente distintas.
Uma mulher negra, por exemplo, sofre racismo e machismo não apenas como sistemas opressores que se somam, mas como sistemas que se relacionam e se modificam gerando outro tipo de opressão. O mesmo ocorre para mulheres de diferentes classes, territórios, ancestralidades, estéticas, identidades e expressões de gênero, sexualidades, habilidades, corpos e assim por diante, ad infinitum, afinal cada experiência é única e relevante.
Em seu texto, Crenshaw elabora o conceito à luz de casos jurídicos de mulheres negras norte-americanas em questões como violência doméstica, violência sexual, direitos trabalhistas. Tais mulheres não puderam ter seus direitos garantidos perante a lei, pois precisaram optar por processar seus agressores ou pela lógica do sexismo ou pela lógica do racismo e não pelo conjunto com o qual essas opressões lhe afetavam.
Hoje, cada vez mais tem se falado em interseccionalidade não só como como um aporte metodológico, mas também como uma identidade política. Isso traz uma questão: como ser interseccional em nossas práticas enquanto feministas?
A mesa que assisti foi um exemplo. Vi ali a concretização da uma mistura qualitativa de discursos e identidades que produziu um caleidoscópio quase literal: visões e posições distintas que somadas geraram terceiras, quartas, quintas, múltiplas composições. Tais composições não eram uníssonas, nem representavam consensos, representavam exatamente a diversidade e pluralidade de vozes do movimento feminista no Brasil e, nesse caso específico, no Rio de Janeiro.
Participaram da mesa quatro integrantes: Nilcéia Freire, ex-secretária da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do governo federal; Marcelle Decothé, ativista pelos direitos humanos pela Anistia Internacional; Vilma Piedade, coordenadora da RENAFRO (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Eleutéria Amora da Silva, fundadora e coordenadora da ONG CAMTRA (Casa da Mulher Trabalhadora). Cada uma ali trazia consigo um conjunto de múltiplas identidades: jovens, avós, negras, nordestinas, periféricas, do candomblé e, por isso, cada vivência e discurso foram únicos.
Ao mesmo tempo, entre elas, no público presencial e no público virtual (a conferência foi transmitida ao vivo), havia uma quantidade enorme de conexões e identificações, que nos aproximavam e nos permitiam trocas objetivas e subjetivas de saberes.
Saí do debate convencida de que precisamos ser interseccionais todo dia, em cada resistência. Ter empatia na fala, saber escutar antes de dizer. Não sei a vivência daquela pessoa, não sei o que marca ela, não sei o que ela passou. Quando colocamos isso em suspenso, abrimos espaço para o outro, o novo, aquilo que simplesmente não sabemos. Porque não temos como saber. Abrimos espaço para criarmos conexões, mesmo que finas e quase invisíveis, sobre aquilo que é comum entre eu e aquela pessoa.
Mas e além de ouvir, o que acontece quando abrimos espaço para essa diferença? Não sei se tenho uma resposta, mas tenho certeza que produzimos algo a partir desse encontro. Mesmo que seja algo duro de ouvir, de sentir e de lidar. Algo que nos ajuda a moldarmos nossos feminismos de forma propositiva, em direções mais múltiplas e, por isso, mais coletivas.
O movimento feminista no Brasil tem se de/parado com o debate de vertentes de uma forma tão intensa que, muitas vezes, produz uma paralisação efetiva de diálogos importantes para produzir tais direções de um caminhar mais coletivo. Que fique claro: não defendo um consenso ou unidade, mas sim, como coloca impecavelmente Chandra Mohanty, a “diferença comum”, que nos permite “ver melhor as conexões e comonalidades […] e explicar tais cruzamentos de fronteiras […] a fim de construir coalizões e solidariedades através dessas fronteiras.” (Mohanty, 2003, p. 505; tradução livre).
Que busquemos isso coletivamente nas interseções do nosso caminhar. Juntas.
*A tradução literal de “women of color” seria mulheres de cor. Todavia, essa expressão não cabe mais em nosso vocabulário enquanto movimento. Dessa forma, escolhi o termo “não-brancas”, posto que a autora visava endereçar mulheres negras, latinas, indígenas e uma gama de diversidade que pode ser traduzida por essa expressão.
Referências
Crenshaw, K. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”. Stanford Law Review, Vol. 43, Julho 1991, p. 1241 – 1299.
Mohanty, Chandra Talpade. “Under Western Eyes” Revisited: Feminist Solidarity through Anticapitalist Struggles. Signs, Vol. 28, N. 2, Inverno 2003, p. 499-535.
Autora
Debora Albu é é mestra em Gênero e Desenvolvimento pela London School of Economics. Faz parte da rede Agora Juntas, que visa construir um espaço colaborativo feminista no Rio de Janeiro e colaboradora da Revista Capitolina. Acredita que a micropolítica é a forma de resistir (pelo menos por enquanto).

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