segunda-feira, 8 de maio de 2017

Como é a vida no mercado de trabalho livre, sem CLT?


Por Pedro Paulo Zahluth Bastos* e Carlos Pinho**
Os economistas que defendem a reforma trabalhista alegam que o livre mercado aumenta a oferta de emprego e assegura o salário justo. Os empresários reclamam da legislação trabalhista há décadas, mas a reclamação aumentou muito depois do aumento dos salários e da queda do desemprego até 2014.
O salário mínimo real cresceu 70% entre 2004 e 2014, com impacto na escala de salários (dada a maior formalização) e nas pensões e aposentadorias. Além do seguro-desemprego, o conjunto de transferências sociais foi ampliado, notadamente o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e o bônus salarial. A correlação de forças tornou-se favorável aos trabalhadores, levando a aumentos do salário real e dos direitos trabalhistas.
A crítica é que o excesso de proteção das leis, dos fiscais e da Justiça trabalhista, assim como o aumento do salário mínimo e da formalização do emprego, prejudicaria os lucros e demoveria os empresários de contratar. Com o fim da política de valorização do salário mínimo e a reforma trabalhista, os lucros aumentariam e o emprego também.
O problema óbvio do argumento é que o desemprego caiu até 2014 enquanto os salários aumentaram. Como os trabalhadores tendem a gastar o que ganham, seus salários são itens de custo para alguns empresários, mas fonte de receita para outros. O que vale para uma empresa não vale para a macroeconomia.
Quando uma empresa paga menos salários, por sua vez, a demanda por bens e serviços vendidos por outros empresários diminui. Isto pode aumentar a capacidade ociosa das empresas e, portanto, diminuir a necessidade de investimentos. Quando os empresários investem menos, eles lucram menos como classe e podem ter problemas para pagar suas dívidas com os bancos.
É por isso que o que parece bom para o empresário egoísta não é necessariamente bom para os empresários como um todo. É também por isso que os economistas que defendiam a queda de salários para assegurar uma rápida recuperação em 2015 apenas mostravam seus parcos conhecimentos de economia e seus preconceitos sociais.
Em outubro de 2015, Samuel Pessoa afirmou em debate que “quanto mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser. Em maio, junho, fiquei superfeliz porque as expectativas estavam mostrando uma queda de salário real de 5%”.
John Maynard Keynes e Michal Kalecki mostraram na década de 1930 que a hipótese neoclássica de que a queda de salários gera mais empregos não tem consistência teórica. Vários mostraram depois que não tem consistência empírica. Para além da confusão entre micro e macroeconomia, há algo que explique o fetiche dos empresários por salários menores?
Em um texto celebre de 1943, Kalecki argumentou que a manutenção de uma situação de pleno emprego asseguraria altos lucros agregados para os capitalistas, mas colocaria em risco a disciplina social ao aumentar o poder de barganha dos trabalhadores e diminuir seu medo da demissão. Por isso, contra a preservação do pleno emprego, os capitalistas tenderiam a se alinhar aos rentistas e pressionar o governo para realizar políticas austeras que levariam a uma recessão, enfatizando a desinflação de preços e salários.
Isso explica em boa medida porque o ministro Joaquim Levy afirmou, em junho de 2015, que havia gente que não queria entrar mais no mercado de trabalho, mas voltaria com a recessão a procurar emprego, o que seria bom, pois “não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho.”
Como era a vida no mercado de trabalho entre 1990 e 2004, quando o baixo crescimento pontuado por recessões gerou grande “aumento da oferta de trabalho”? Com a palavra, o cientista político Carlos Pinho:
Sou nascido e criado na favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, filho de uma paraibana de Campina Grande. Trabalho desde os dez anos de idade e estudei a vida inteira em escola pública. Trabalhei como boleiro de tênis no Marina Barra Clube, fui cobrador de vãs, office-boy, lavador de pratos em cozinha (fervendo) em Ipanema, faxineiro, atendente e recepcionista de casa de festas. Meu último emprego antes de ser aprovado para o curso de Ciências Sociais na UFRJ em 2004 após três tentativas.
Naquela época não havia cotas para estudantes de escolas públicas e negros nem bolsas aos estudantes pobres. Como o curso era integral, fiz um acordo com o proprietário da casa de festas, que me demitiu e me contratou como freelancer, no segundo semestre de 2014. Trabalhava sábados, domingos e feriados das oito e meia da manhã às onze da noite. Ganhava 60 reais para trabalhar por 29 horas cada fim de semana.
Fiquei dois anos sem curtir o fim de semana para arcar com os custos de ônibus e xerox de textos. O sonho de ingressar na universidade pública era maior que tudo. A marmita eu levava de casa (e ainda levo). Mesmo com esse “bico”, eu não tinha dinheiro para me deslocar. Até para pagar a inscrição do rigoroso vestibular da UFRJ eu pedi emprestado.
Não vi outra saída a não ser pedir um aumento de ao menos 20 ou 30 reais para o dono da casa de festas. Ele me disse uma frase que jamais saiu da minha cabeça: “Tem muita gente lá fora querendo fazer o que você faz, por muito menos”. Sabia que era tratado quase como um escravo, mas não tinha opção.
Ou melhor, tive: os recursos para apoio aos estudantes pobres aumentaram em 2006. Com boas notas, consegui uma bolsa de monitoria no laboratório de informática do IFCS. Como precisava, trabalhei até o quarto período da faculdade na casa de festas, quando consegui uma bolsa de iniciação científica no IPPUR/UFRJ. Também obtive uma bolsa na Divisão de Assistência ao Estudante (DAE), o que me fez abandonar o “bico” na casa de festas e me dedicar com mais calma e profundidade às incontáveis leituras.
Sem o apoio incondicional de minha amada mãe, Josefa dos Santos, a Dona Zefinha, não estaria hoje no meu segundo pós-doutorado e próximo do primeiro aniversário como Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ (antigo IUPERJ). Ela trabalhou como empregada doméstica para me criar com muito sacrifício e dignidade.
Minha mãe teve seus direitos vilipendiados por patrões. Durante os anos 1990, ela trabalhou como faxineira para uma estadunidense e ganhava em média 30 reais por cada faxina, incluindo passagem. Durante as suas crises de dores de coluna, ficava impossibilitada de trabalhar e, como precisávamos da grana para comprar comida e pagar as contas, eu fazia a faxina no lugar dela. Fiz isso umas três vezes. A patroa era inflexível, avarenta e não dava aumento. Um amigo de minha mãe, morador da Cidade de Deus, trabalhou para ela por mais de 20 anos e não recebeu quaisquer direitos trabalhistas, pois a patroa viajou e não voltou mais.
Foi uma luta imensa para minha mãe se aposentar com salário mínimo. Como não tinha o costume de olhar a carteira de trabalho, a advogada a que recorremos descobriu que as “casas de família”, as redes de hotéis e uma empresa vendedora de automóveis em que minha mãe trabalhou violaram os seus diretos, reduzindo pela metade (ou muito menos) os anos efetivamente trabalhados. Ela trabalhou para um ator global por um ano e seis meses. Ele “prendeu” sua carteira e, quando a demitiu, a entregou assinada contendo somente um mês de serviço. Ela quase não se aposentou, tendo em vista as inúmeras depreciações de seus direitos. Após mais de dois anos de luta, enfim se aposentou.
Não tenho nada a acrescentar ao que escreveu meu colega Carlos Pinho. Tirem suas próprias conclusões sobre porque associações de empresários, economistas neoliberais, o Jornal Nacional e os editoriais dos jornalões defendem as reformas trabalhista e da previdência.
**Carlos Pinho é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), ex-IUPERJ e pós-doutorando no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED), sediado no IESP/UERJ
*Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp

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