sexta-feira, 23 de abril de 2021

“Kit covid” no Brasil, empresas que vendem, seu consumo e consequências




Foto: Redes Sociais

No Brasil, 23 empresas detêm o registro dos quatro medicamentos do “kit covid” que foram vendidos nas farmácias: sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida.

Dentre elas, a EMS, do Grupo NC, é a única a produzir os quatro medicamentos que a  reportagem apurou. O presidente do grupo, Carlos Sanchez, é apontado como um dos 30 bilionários do país no levantamento da Revista Forbes e, segundo reportagem, esteve presente no jantar em que Bolsonaro se reuniu com empresários, no dia 7 de abril, em São Paulo. A EMS conseguiu a aprovação da Anvisa para conduzir um estudo clínico com a hidroxicloroquina em pacientes com covid-19. Além da EMS, o Grupo NC também detém a Germed, que produz sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina e nitazoxanida.

Procurada pela reportagem, a EMS afirmou que “orienta que os medicamentos ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina e nitazoxanida sejam utilizados conforme as indicações das respectivas bulas, sob prescrição médica” e que “esses profissionais são os únicos habilitados a prescrever o uso adequado destes medicamentos, seguindo os protocolos de medicina”. Já a Germed respondeu que “orienta que azitromicina, ivermectina e nitazoxanida sejam utilizados conforme as indicações nas respectivas bulas e sempre sob prescrição médica”.

De acordo com reportagem do Globo, Renato Spallicci, presidente da Apsen, que produz o Reuquinol (forma comercial da hidroxicloroquina), foi recebido no Ministério da Saúde antes do governo publicar o protocolo que orientou o uso do medicamento em casos leves de covid-19. 

Procurada pela reportagem, a Apsen afirmou que “produz o sulfato de hidroxicloroquina no Brasil há 18 anos, com foco no tratamento de pacientes crônicos com lúpus e artrite reumatoide e recomenda sua utilização apenas nas indicações previstas em bula, que são aprovadas pela Anvisa”. A empresa reforçou que “não há aprovação de nenhum órgão regulador da saúde, nem da OMS, para sua utilização no tratamento da COVID-19.

A Sanofi Medley é a única empresa estrangeira autorizada a comercializar a hidroxicloroquina no país. A farmacêutica francesa tem como acionista o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que defendeu o medicamento no combate ao coronavírus. Em nota para a reportagem, a empresa disse que “hoje, os medicamentos à base de hidroxicloroquina da Sanofi (Plaquinol) são oficialmente registrados em mais de 60 países para uso em algumas doenças dermatológicas e reumatológicas, assim como para malária e lúpus, em alguns países como o Brasil. Atualmente, as indicações aprovadas de Plaquinol não incluem o tratamento ou prevenção de covid-19 em nenhum lugar do mundo.”

"Kite Covid". (Foto: Redes Sociais)



Empresas que detêm registro dos medicamentos do “kit covid” apurados pela reportagem

Abbott Laboratórios do Brasil
Aché Laboratórios Farmacêuticos
Althaia Indústria Farmacêutica
Antibióticos do Brasil
Apsen Farmacêutica
Beker Produtos Fármaco Hospitalares
Brainfarma Indústria Química e Farmacêutica
Cosmed Industria de Cosmeticos e Medicamentos
Ems / Ems Sigma Pharma
Eurofarma Laboratórios
Farmoquímica
Galderma Brasil
Germed Farmaceutica
Laboratório Teuto Brasileiro
Legrand Pharma Indústria Farmacêutica
Momenta Farmacêutica
Nova Quimica Farmacêutica
Prati Donaduzzi & Cia
Sandoz do Brasil Indústria Farmacêutica
Sanofi Medley Farmacêutica
Supera Farma Laboratórios
UCI Farma Indústria Farmacêutica
Vitamedic Indústria Farmacêutica

Metodologia:

Foram exportados os dados públicos referentes à venda de medicamentos industrializados controlados e antimicrobianos de janeiro de 2018 a março de 2021. O período considerado para as análises referentes à pandemia foi de março de 2020 a março de 2021.

Filtramos as vendas de medicamentos com os princípios ativos azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e sulfato de hidroxicloroquina.

Limpamos as bases e calculamos a quantidade de comprimidos por embalagem (dos medicamentos vendidos nessa forma farmacêutica).

Foram consultados os dados de notificações de farmacovigilância entre 1 de abril de 2019 e 1 de abril de 2021 no painel da Anvisa. Filtramos os medicamentos com os princípios ativos azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e hidroxicloroquina/sulfato de hidroxicloroquina.

Registros de efeitos adversos de medicamentos do “kit covid” aumentaram na pandemia

Com milhões de comprimidos vendidos, os registros de efeitos adversos causados pela administração de medicamentos do kit têm aumentado no Brasil. Desde abril do ano passado, a Anvisa recebeu 456 notificações de efeitos adversos sobre o uso dos quatro medicamentos do “kit covid” medicamentos. A quantidade é dez vezes mais que no mesmo período anterior, de abril de 2019 a abril de 2020.

Das notificações durante a pandemia, 173 foram graves. Os efeitos relatados mais comuns são sintomas cardiovasculares — como distúrbios no ritmo dos batimentos cardíacos —, dano hepático, diarreia e náuseas.

Segundo a pesquisadora em farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ana Paula Herrmann, todo medicamento tem efeitos adversos, embora muitas vezes os benefícios para a sua indicação superam os riscos. De acordo com ela, isso não ocorre com o kit covid. “O problema é que na ausência de benefícios, tudo o que sobra são os riscos. E aí não há nada que justifique o uso, porque os riscos podem, muitas vezes, serem imprevisíveis”. Herrmann comenta que efeitos adversos como arritmia e lesão renal causados pela associação de hidroxicloroquina e azitromicina são esperados, mas outros são desconhecidos porque até então estes medicamentos estavam restritos a um certo grupo de pacientes, e não eram utilizados por uma grande parte da população. 

Goiás é onde mais se vendeu “kit covid” proporcionalmente

Foi o estado de Goiás onde foram vendidas mais caixas dos quatro medicamentos do kit covid em relação ao tamanho da população. É lá também onde mais se vendeu caixas de azitromicina proporcionalmente. Já o Distrito Federal foi onde mais foram vendidas hidroxicloroquina e ivermectina em relação à população, e o Amapá onde as vendas de nitazoxanida foram maiores proporcionalmente.

Por sua vez, São Paulo ocupa o topo entre os estados onde mais foram vendidos os quatro medicamentos do kit covid em número absoluto — cerca de 1,5 milhão de caixas, mais de um quinto do total vendido em farmácias brasileiras na pandemia. 




“Não há dúvida que o uso off-label (fora da finalidade da bula) é o responsável pelas grandes vendas desses e de outros medicamentos do ‘kit covid’, que muitas vezes são colocados em lugares estratégicos nos balcões das farmácias para chamar a atenção dos clientes”, afirma o pesquisador do Instituto de Física de São Carlos da USP e especialista em química medicinal, Adriano Andricopulo. “O aumento das vendas está associado à expectativa das pessoas, que infelizmente ainda é grande, de obter os possíveis benefícios terapêuticos e se protegerem contra a doença. Mas, esses medicamentos simplesmente não funcionam: o ‘kit’ não serve pra nada”, diz.

O uso de medicamentos do “kit covid” foi defendido e incentivado publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro para o “tratamento precoce” da covid-19, apesar de ser desaconselhado ou refutado por órgãos de saúde e pesquisa nacionais e internacionais. Segundo protocolo da Organização Mundial da Saúde (OMS) de março de 2021, a hidroxicloroquina não é recomendada para pacientes com covid-19 independentemente do quadro de gravidade da doença; e a ivermectina é desaconselhada, exceto em pesquisas clínicas. 

No Brasil, diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmaram que não há medicamentos para prevenir ou tratar precocemente a doença; a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda o tratamento e a Associação Médica Brasileira (AMB) publicou que os quatro medicamentos do kit não possuem eficácia científica comprovada e deveriam ser banidos do tratamento da covid-19. O Conselho Federal de Medicina, contudo, diz não apoiar nem condenar o tratamento precoce e defende que médicos podem definir o melhor tratamento para os pacientes.

Fonte de pesquisa: Pública

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